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Leonardo Sakamoto

Atos pedem golpe e Bolsonaro os usa como cortina de fumaça para coronavírus

15.mar.2020 - O presidente da República, Jair Bolsonaro, desce a rampa do Palácio do Planalto, em Brasília, para cumprimentar manifestantes que participavam de ato pró-governo - Dida Sampaio/Estadão Conteúdo
15.mar.2020 - O presidente da República, Jair Bolsonaro, desce a rampa do Palácio do Planalto, em Brasília, para cumprimentar manifestantes que participavam de ato pró-governo Imagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

15/03/2020 20h01

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"AI-5! AI-5! AI-5! AI-5!" Enquanto Jair Bolsonaro subia de volta a rampa do Palácio do Planalto, após cumprimentar apoiadores, tirar selfies e elogiar os protestos contra o Congresso Nacional, um grupo gritava por um novo Ato Institucional número 5. Decretado pela ditadura militar, em dezembro de 1968, ele deu poderes para que o Palácio do Planalto fechasse o Congresso Nacional, estabelecesse a censura e descesse o cacete geral.

Sorrindo, o presidente da República, que jurou proteger a Constituição Federal, acenava ao público que pedia a morte da democracia. "Não tem preço o que esse povo está fazendo aqui", havia dito logo antes.

Desrespeitar o texto constitucional não é novidade para ele, mas a irresponsabilidade de Bolsonaro foi além. Ele também ignorou o apelo que o Ministério da Saúde fez a todos os brasileiros para que evitassem aglomerações que ajudem a espalhar o coronavírus. E mando às favas o necessário isolamento de sete dias por ele ter voltado do exterior trazendo, na bagagem, uma comitiva com infectados pelo Covid-19.

Apesar da ação diligente e racional do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o governo sabe que tem um abacaxi de grandes proporções para descascar. Primeiro, por conta do número insuficiente de leitos e respiradores à disposição do SUS, o que pode tornar a vida da camada mais pobre da sociedade um inferno. Segundo, porque o ministro Paulo Guedes, atrasado, vai apresentar o seu plano para proteger a economia do impacto do coronavírus somente dois meses após o mundo saber que o negócio não era brincadeira.

A participação-surpresa de Bolsonaro nos atos, deste domingo (15), expondo-se e, portanto, desautorizando seu ministro, e dando mau exemplo, serviu para criar mais uma cortina de fumaça para os abacaxis. Isso ajudou a sequestrar a pauta. Seus atos e a enxurrada de críticas a eles competiram com o coronavírus entre os temas mais falados do dia.

15.mar.2020 - Aos gritos de mito, Bolsonaro sob a rampa do Palácio do Planalto após ter contato com apoiadores em ato a seu favor em Brasília - Felipe Pereira/UOL - Felipe Pereira/UOL
15.mar.2020 - Aos gritos de mito, Bolsonaro sob a rampa do Palácio do Planalto após ter contato com apoiadores em ato a seu favor em Brasília
Imagem: Felipe Pereira/UOL

A Bolsa de Valores, mesmo com as recuperações, teve queda mais acentuada em comparação ao dos outros mercados por causa redução do comércio e da produção global causada pelo vírus. Isso mostra que nossos fundamentos não são tão sólidos e a confiança em nós ainda é baixa. O sacolejo mostrou que a estrada que teremos que trilhar será mais esburacada ainda, talvez pior que o crescimento de 1,1% do PIB, em 2019. Ao invés de lidar com isso de forma racional, o presidente repete o que faz de melhor - joga cortinas de fumaça para entreter sua claque e distrair os críticos.

Desde que começou a crise, ele já pegou carona no linchamento público de Drauzio Varella e soltou acusações infundadas de fraude nas eleições de 2018. Da mesma forma que, no ano passado, enquanto a Amazônia queimava, disparou contra o ator Leonardo DiCaprio, organizações não-governamentais, indígenas e países estrangeiros para encobrir sua cumplicidade na destruição da floresta.

Comendo instituições

Simultaneamente às distrações, o presidente vai corroendo as instituições de monitoramento e controle. Já comeu o Coaf, a Receita Federal, a Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República e desestruturou o Ibama, a Funai, o Incra, o ICMBio. O grande prêmio, claro, é o Congresso e o STF. Que ele não precisa fechar, apenas fragiliza-los a fim de garantir sua própria sobrevivência política.

Ao longo das últimas semanas, apoiadores do presidente postaram textos indignados reclamando que a manifestação deste domingo seria democrática. Os atos foram convocados com base na premissa do, agora icônico, "foda-se" que o general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, sugeriu que o presidente mandasse ao Congresso. E o que se viu na rua, com exceções, foi exatamente isso: um grande e sonoro "foda-se" à democracia.

Os bolsonaristas exigem a liberdade para cassar liberdades.

Ao contrário de outros protestos, neste, foi significativa a quantidade de cartazes e palavras de ordem em nome do fechamento do Congresso e do STF, da prisão de Rodrigo Maia, de Davi Alcolumbre e de ministros do Supremo. E, no limite da sinceridade, na exigência que Bolsonaro governe sem limites. De caminhões de som vieram pedidos de "intervenção militar" - neologismo para golpe.

A avenida Paulista, em São Paulo, preencheu quase um quarteirão, muito menos que em outras manifestações. Mas como a convocação foi feita sob a sombra do coronavírus e de um pedido (não-sincero) de desmobilização do próprio presidente, a contagem de cabeças não produz um termômetro confiável. Mas a existência de tanta gente sem vergonha de pedir ditadura é um belo medidor do baixo nível de respeito à Constituição dos apoiadores do presidente.

Pelas pautas anti-republicanas e os discursos violentos, o grosso dos presentes não era o grupo ampliado que não aprova Bolsonaro de forma incondicional - naco que está na faixa dos 30% da população. Mas é o bolsonarismo-raiz, que as pesquisas dos institutos de opinião apontam entre 12% e 15%, e pula feliz com ele do precipício.

Desses, uma parte aceita colocar a si mesmo em risco indo aos atos. Já outra parte, inimputável, professa um terraplanismo biológico e acha que a infecção é uma grande conspiração sino-comuno-globalista. Como em São Luís (MA), em que uma pessoa puxava ao megafone: "Coronavírus nunca matou uma pessoa na face da Terra. E não vai matar". Ou, em São Paulo, em que o vírus foi chamado de "mentira" em um caminhão de som.

Com o avanço da pandemia, há a possibilidade real do Congresso Nacional fechar as portas ou reduzir os seus trabalhos. Em uma gestão racional e ética, todos os esforços seriam voltados para a saúde pública e a proteção da economia. Como o governo Bolsonaro não caminha pela trilha da razão, tampouco se preocupa com o respeito às regras, a dúvida é se ele vai aproveitar o cenário de caos e achar que pode governar por decreto.

Se, no pior momento da crise, saídas autoritárias do presidente forem aceitas passivamente pelas outras instituições e, principalmente, pela cansada população brasileira, o AI-5 estará dado. Sem a necessidade de canetada do capitão.

Em tempo: No dia 31 de outubro do ano passado, o deputado Eduardo Bolsonaro afirmou, em uma entrevista à jornalista Leda Nagle, que "se a esquerda radicalizar", usando como exemplo manifestações de rua que ocorriam na América do Sul, o governo terá que dar "uma resposta que pode ser via um novo AI-5". Depois, ele disse que não havia dito o que, de fato, disse. A ideia foi, então, repetida em 25 de novembro pelo ministro da Economia, Paulo Guedes. "Não se assustem, então, se alguém pedir o AI-5." Ele reclamava da convocação de protestos que podem atrasar o seu cronograma no Brasil. Naquele momento, avisamos que se essas declarações não fossem encaradas com gravidade, elas virariam bandeiras dos seguidores. Bem um "eu te disse" não é o bastante.