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Leonardo Sakamoto

Coronavírus não pode ser desculpa para cancelar eleições, diz pesquisadora

O número de infectados por covid-19 ao redor do planeta se aproxima de meio milhão. Até às 9h desta quinta, foram registradas 487.648 pessoas contaminadas com o novo coronavírus - Estadão Conteúdo
O número de infectados por covid-19 ao redor do planeta se aproxima de meio milhão. Até às 9h desta quinta, foram registradas 487.648 pessoas contaminadas com o novo coronavírus Imagem: Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

27/03/2020 14h25

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Além dos debates sanitários, econômicos e políticos, a chegada da pandemia ao Brasil também trouxe uma questão eleitoral: o coronavírus pode adiar a escolha de prefeitos e vereadores em outubro deste ano?

Com exceções, como o presidente da República, autoridades vêm recomendando o isolamento social para retardar a velocidade da infecção. Discute-se, consequentemente, se isso prejudicará a escolha de candidatos, as campanhas eleitorais e mesmo o dia de votação. Há políticos defendendo de tudo - do atraso de alguns meses à realização das eleições de 2020 junto com as de 2022.

"A proposta de unificação das eleições, acompanhada do argumento simplório de que isso representa economia de recursos públicos, é daquelas que sempre ronda o Congresso. Agora, ela pega carona no pretexto da pandemia". A avaliação é de Roberta Maia Gresta, doutora em Direito Político pela UFMG, professora e pesquisadora da PUC-MG na área de Direito Eleitoral e servidora da Justiça Eleitoral.

"Digo pretexto porque aí já não se trata de adiamento. Trata-se de cancelamento das eleições 2020, prorrogação de mandatos em curso e criação de uma super-eleição na qual o eleitor votaria para sete cargos, de vereador a presidente, de uma só vez. O que isso tem a ver com contenção de contágio agora, em 2020?", questiona.

Para Roberta Gresta, que conversou com a coluna sobre os cenários para as eleições em tempos de coronavírus, é muito cedo para projetar o quadro da doença e quais as recomendações médicas aplicáveis daqui a meses.

"Se as eleições estivessem marcadas para as próximas semanas, poderíamos dizer que representariam um risco. Mas não estão. O comparecimento dos eleitores às urnas somente está previsto para 4 de outubro", diz.

O adiamento das eleições por alguns meses, caso a pandemia não arrefeça, é uma medida que já foi citada como possível, inclusive pelo ministro do STF Luís Roberto Barroso, que também é vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Mas que deve ser tomada com cuidado. Segundo a pesquisadora, um dos impactos possíveis de cancelamentos é a ruptura da estabilidade do processo eleitoral, que garante a vencedores, derrotados e eleitores a credibilidade do sistema.

Ela lembra que a ideia de normalidade eleitoral não é estanque. "Não há, em eleição, 'normalidade laboratorial' - aquela que os professores de física e química nos prometiam nos experimentos 'sob condições normais de temperatura e pressão' que jamais estavam presentes na realidade", explica. "Condicionar a viabilidade das eleições a um parâmetro tão idealizado de normalidade é, em si, um grande risco para a democracia."

Por exemplo, é normal uma eleição em que notícias falsas, disparos em massa em grupos de WhatsApp pagos por empresas, candidaturas femininas operando como laranjas para candidatos masculinos?

Veja a entrevista a seguir.

O adiamento das eleições municipais de outubro, sugerido por autoridades, como o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tem sido abraçada por alguns parlamentares no Congresso - apesar de suas lideranças se mostrarem contra. Eleições com coronavírus seriam um risco à população?

Com base no que dizem a Organização Mundial da Saúde e todas as entidades e pesquisadores com autoridade para se pronunciar sobre a questão sanitária, o enfrentamento à pandemia do coronavírus exige, no momento, o máximo de isolamento de todos nós. Este é o cenário atual.

Uma vez que, como pessoas sensatas, aceitamos a opinião dos especialistas em saúde, fica fácil concluir que contribuiria irresponsavelmente para o agravamento do risco de contágio o ato que favoreça, incentive ou imponha a aglomeração de pessoas nas próximas semanas. Portanto, se as eleições estivessem marcadas para as próximas semanas, poderíamos dizer que representariam um risco. Mas não estão.

O comparecimento dos eleitores às urnas somente está previsto para o dia 4 de outubro. Não temos como projetar qual será o quadro da doença e quais serão as recomendações médicas aplicáveis daqui a seis meses.

Roberta Maia Gresta, professora e pesquisadora de Direito Eleitoral  - Divulgacão - Divulgacão
Roberta Maia Gresta, professora e pesquisadora de Direito Eleitoral
Imagem: Divulgacão

Mas há uma possibilidade real desse adiamento acontecer?

Se partimos da sua primeira pergunta, sobre o risco à população (que é a que deveria guiar qualquer debate sobre o tema), as chances de a eleição ser adiada seriam calculadas junto à curva do contágio e ao grau de gravidade. E isso nos diria que agora, ainda em março, é muito prematuro considerar a possibilidade real de adiarmos as eleições.

Só que a resposta a essa segunda pergunta já não depende apenas de acompanharmos, com sensatez, os boletins da OMS e realizarmos ajustes pontuais compatíveis com as medidas sanitárias aplicáveis a cada cenário. Entra aqui o fator político.

O discurso que se tem difundido é que não conseguiremos restabelecer o contexto de normalidade exigido para as eleições, e que isso, por si, mesmo que superado o cenário de rápido contágio e mortes, seria suficiente para justificar o adiamento das eleições. Essa semana, as preocupações com a economia engrossaram o coro, com propostas de que o Fundo Especial de Financiamento de Campanhas e mesmo o orçamento da Justiça Eleitoral sejam redirecionados para subsidiar a recuperação do mercado.

Note que, assim como a própria pandemia, os discursos escalonam de forma exponencial - saímos, dias atrás, da ideia de que adiar as eleições seria uma medida excepcional que somente se justificaria para evitar a dispersão feroz do coronavírus, para agora estarmos discutindo se vale mesmo a pena destinar recursos públicos para as eleições. De repente, o adiamento do pleito passa a ser apresentado como um desdobramento aceitável, não como uma questão central. Isso é preocupante.

O que diz a legislação sobre prazos?

Do ponto de vista jurídico, "adiar a eleição" significa aprovar uma emenda constitucional que modifique a previsão de que as eleições ocorrem sempre no primeiro domingo de outubro do último ano dos mandatos. A duração dos mandatos também é prevista na Constituição: quatro anos no caso de prefeitos e vereadores.

As diversas etapas do processo eleitoral também têm prazos para serem concluídas. Por exemplo, a filiação partidária e o domicílio eleitoral devem ser definidos por pretensos candidatos até seis meses antes da eleição. Já os eleitores podem transferir seu título até 151 dias antes do pleito. As convenções partidárias começam no final de julho, o registro dos candidatos é feito até 15 de agosto. Logo depois começa a propaganda eleitoral.

São todos prazos constitucionais e legais. Por isso, deve-se desfazer a impressão de que bastaria ao Tribunal Superior Eleitoral alterar o "calendário eleitoral" para resolver o problema. Aliás, essa foi a resposta dada pelo Tribunal, em 19 de março, à consulta que lhe foi dirigida com tal propósito.

Ainda que agora tramite no âmbito do Congresso, uma alteração não seria simples. No centro de todo o debate, está a regra da anualidade eleitoral. Ela própria é prevista na Constituição. Diz, em síntese, que todas as normas que regerão uma eleição devem estar vigentes um ano antes da realização desta. Assim, em 4 de outubro de 2019, estavam conhecidas todas as normas a serem aplicadas às Eleições 2020. Por isso, além de proporem a emenda para alterar a data da eleição, os parlamentares terão que lidar com o fato, evidente, de que a promulgação dessa emenda se dará a menos de um ano da data do primeiro turno de 2020.

Há deputados defendendo que esta eleição seja realizada conjuntamente com as eleições gerais de 2022. Isso é possível?

A proposta de unificação das eleições, acompanhada do argumento simplório de que isso representa economia de recursos públicos, é daquelas que sempre ronda o Congresso. Agora, ela pega carona no pretexto da pandemia. Digo pretexto porque aí já não se trata de adiamento. Trata-se de cancelamento das Eleições 2020, prorrogação de mandatos em curso e criação de uma super-eleição na qual o eleitor votaria para sete cargos, de vereador a presidente, de uma só vez. O que isso tem a ver com contenção de contágio agora, em 2020?

Qual o impacto para a sociedade de um atraso de alguns meses nas eleições? E de dois anos?

O primeiro grande impacto é a ruptura da estabilidade do processo eleitoral. Na minha tese de doutorado, expliquei que o voto periódico não é uma formalidade ritual. É um compromisso com a normalidade eleitoral democrática, assumido em três direções: para os eleitos, resguarda o mandato contra reduções indevidas; para os não eleitos, assegura a renovação da oportunidade de concorrerem; para o eleitorado, reafirma que a legitimidade dos mandatos somente subsiste nos termos estritos, inclusive temporais, da decisão eleitoral. Por isso, é importante ter clareza de que essas propostas não são triviais.

Mas é preciso reconhecer que o adiamento das eleições sem prorrogação de mandatos, se tratado na perspectiva das exigências sanitárias de contenção da pandemia, comporta um debate franco. Como dito pelo vice-presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, se o adiamento for inevitável, deve se dar apenas pelo tempo exigido para que os atos do processo eleitoral sejam praticados sem risco.

Já a prorrogação dos mandatos de prefeitos e vereadores até 2022 seria gravíssima. Não se apresenta como resposta razoável ao problema que está na pauta. Como um passe de mágica, a unificação promete cortar os gastos com eleições pela metade, sem nem mesmo avaliar aspectos logísticos, como o aumento do tempo de votação a ponto de demandar que esta ocorra em dois dias, com os custos e riscos associados a se conservar no local de votação urnas já alimentadas. O que dirá das grandes questões, como o esvaziamento do debate político no interregno de quatro anos, o tumulto das campanhas eleitorais sobrepostas em todos os níveis e o comprometimento da adequada reflexão dos eleitores.

É possível realizar as eleições em um ambiente fora da normalidade?

É preciso dizer que é legítima a preocupação com a viabilidade das etapas do processo eleitoral que têm prazo iminente: fixação do domicílio eleitoral dos pré-candidatos e filiação partidária, até 4 de abril, e encerramento dos alistamentos e transferências de eleitores, em 6 de maio. Mas o ponto é que é possível adotar estratégias pontuais que permitam a realização dessas etapas sem expor a risco os eleitores, os candidatos e, com mais intensidade, os servidores da Justiça Eleitoral.

Por exemplo, o TSE já determinou a suspensão da coleta de dados biométricos até 30 de abril e manteve atendimento nos cartórios eleitorais apenas nas situações urgentes, como é o caso de a transferência ser necessária para atender ao prazo de fixação do domicílio eleitoral. É um exemplo do que se pode fazer para assegurar o normal prosseguimento do processo eleitoral em um contexto tão sensível.

Muita gente tem dito que, ainda assim, haverá prejuízo, pois não se teria condições normais de realizar eventos de filiação, convenções partidárias e, depois, o famoso corpo-a-corpo com eleitores. Eu me forço, diante disso, a resgatar os temas que discutíamos há um mês: migração das campanhas para as redes sociais, fake news circulando por disparos em massa, quase extinção da propaganda de rua, candidaturas femininas fictícias... Ou seja, muito antes da pandemia, já vínhamos tentando lidar com testes difíceis para a normalidade das eleições.

A verdade é que a ideia de normalidade eleitoral não é estanque, absoluta. Não há, em eleição, "normalidade laboratorial" - aquela que os professores de física e química nos prometiam nos experimentos "sob condições normais de temperatura e pressão" que jamais estavam presentes na realidade. Condicionar a viabilidade das eleições a um parâmetro tão idealizado de normalidade é, em si, um grande risco para a democracia.