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Leonardo Sakamoto

Universidade do WhatsApp formou milhões de especialistas em cloroquina

Comprimidos de cloroquina - Foto: HeungSoon/Pixabay
Comprimidos de cloroquina Imagem: Foto: HeungSoon/Pixabay

Colunista do UOL

09/04/2020 13h47

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Não sou profissional ou pesquisador da área de saúde, portanto não tenho competência para falar da efetividade da cloroquina no tratamento do coronavírus. Há médicos que, analisando caso a caso, e sabendo dos riscos do uso de uma droga antiga, mas em fase de testes para uma doença nova, resolvem ministrá-la, acompanhando o paciente e se responsabilizando pelos efeitos em sua saúde. Há outros que avaliam que não há provas de que ela seja mais eficaz do que o próprio sistema imunológico do paciente e traz riscos que não valem a pena, preferindo não usá-la. Eu, que sou leigo, não tenho como opinar.

Mas, espero com atenção, estudos conclusivos que confirmem a capacidade do remédio de agir contra o coronavírus. A sociedade deve estar informada sobre as pesquisas que subsidiam a adoção de política públicas que distribuem produtos químicos em larga escala - políticas que devem ser baseadas em testes e pesquisas. E, para além da cloroquina, há uma série de drogas que vêm sendo estudadas contra a doença. Quero que me provem qual delas tem mais eficácia.

Enquanto isso, mandatários, dos mais diferentes matizes ideológicos, da esquerda à direita, também deveriam se conter ao invés de usar o remédio para fins eleitorais.

Como escrevi aqui ontem, Jair Bolsonaro usou o pronunciamento à nação, desta quarta (8), para dizer que é apenas o uso da cloroquina e não o isolamento social que vai evitar mortes. Quer levar o mérito dos resultados positivos da quarentena de governadores e prefeitos para o seu colo, apontando que o efeito do segundo foi causado pelo primeiro. Um comportamento de parasita político, não de presidente da República.

Enquanto isso, milhares de seus seguidores no Twitter são todos "primos" de um tal de Antonio Carlos, de 67 anos, que teria se curado com cloroquina. Devem ser também todos primos do caminhoneiro, do porteiro e do borracheiro que teria morrido ao trocar pneu e teve sua morte foi registrada como Covid-19...

Tomei cloroquina na segunda malária que peguei cobrindo conflitos armados fora do país - outra vida, um dia eu conto. Houve efeitos colaterais? Sim. Foi tranquilo? De jeito nenhum. É um medicamento e não vitaminas B e C que você pode consumir sem preocupação. Naquele momento, eu não sabia que era hipertenso e cardíaco (condições que, hoje, estão sob controle), como muitos brasileiros também não sabem.

Mesmo assim, muita gente comprou o remédio para se "precaver", em uma onda de histeria que - ironicamente - foi alimentada pelo próprio presidente, que chamou a pandemia de coronavírus de "histeria".

A automedicação é um consagrado esporte nacional, ainda mais em um momento em que a ciência se depara com um vírus novo para o qual não tem todas as respostas - mas que, decerto, não passará por jejum a Deus. E em um ambiente de alta conectividade digital, em que as pessoas acham que a imensa quantidade de informação aleatória que recebem lhes garantem graduação em Medicina pela Universidade do WhatsApp, com residência em Infectologia pelo prestigioso Hospital do Google.

Cloroquina não é pastilha de menta. Mesmo que seu amigo consiga uma caixa sem precisar de receita por conta de um "esquema", não tome o remédio sem orientação e acompanhamento de um médico.

Ou, se fizer isso, ao menos permita que a seleção natural siga seu curso. Deixe uma declaração por escrito abrindo mão de atendimento médico em hospitais públicos e privados se as coisas não saírem como você imaginava. Assim, também ajudará a salvar a vida de outros que não estão ocupando leitos por burrice.

Na hora mais sombria, alguns de nós somos heroicamente solidários e outros, covardemente egoístas. Às vezes, isso nem é proposital, pois o medo irracional diante do desconhecido toma conta das funções cognitivas.

Quando foram anunciados estudos preliminares dando conta que a cloroquina poderia ajudar a curar a Covid-19, muitos foram às farmácias e estocaram o produto. Quando, por outro lado, saíram estudos dizendo que seu uso é inconclusivo e que o consumo do remédio pode causar danos a determinadas grupos, aquelas pessoas já estavam tão agarradas à crença do remédio que não aceitou contrapontos.

Tenho amigos com lúpus que me contaram, preocupados, que estavam ficando sem o medicamento porque uma horda de bárbaros assustados limpou as prateleiras das farmácias. O governo, por conta, definiu a necessidade de prescrição médica para a sua compra, mas isso mostra como uma parcela da população aposta no "cada um por si e Deus acima de todos", tão defendido pelo presidente da República.

Peregrinei por São Paulo atrás do remédio para problemas cardíacos dos meus pais, que havia se esgotado nas farmácias. Os atendentes disseram que os clientes compraram caixas e caixas para se precarevem. É o mesmo medo irracional que faz pessoas estocarem papel higiênico sem motivo algum. Os produtos de uso contínuo (não estou falando de máscaras e de álcool gel) não acabam porque deixaram de serem fabricados e distribuídos numa crise como esta, mas porque celerados não pensaram no semelhante e levaram tudo.

Enfim, deixe a cloroquina para os médicos, os farmacêuticos, os pesquisadores, as universidades, os institutos de pesquisa (como a Fiocruz), as Secretarias de Saúde, o Ministério da Saúde, a Organização Mundial da Saúde.

O presidente entende tanto de saúde pública quanto de economia. Ele sabe que não pode opinar no segundo caso, pois ações de empresas caem na Bolsa de Valores e empresários chiam. Mas como o primeiro caso trata apenas de vidas humanas, então tudo bem.