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Leonardo Sakamoto

Covid-19, como a polícia no Rio, é mais letal quando encontra negros pobres

Colunista do UOL

21/05/2020 12h36

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Setenta e dois - João Pedro Matos Pinto, 14 anos, negro, foi assassinado com um tiro de fuzil, que o atravessou da barriga ao ombro, nesta segunda (18), após a casa em que estava brincando com primos ser invadida por agentes durante uma operação das polícias Civil e Federal no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ).

A polícia disse que perseguia suspeitos, mas a família afirma que a versão é falsa. Líderes comunitários contaram 72 marcas de disparos na residência. Segundo seu pai, o estudante nunca tirou nota vermelha na escola.

Duzentos e cinquenta e sete - Em abril do ano passado, militares executaram o músico negro Evaldo Rosa dos Santos, em Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro, durante ação de policiamento. Ele foi morto quando o carro em que estava com a família indo para um chá de bebê foi cravado de balas ao ser confundido com outro. Foram disparados 257 tiros de fuzil, dos quais 83 atingiram o automóvel e nove, Evaldo.

O catador de recicláveis Luciano Macedo também foi atingido quando tentava ajudar a família do músico que estava no veículo (e sobreviveu). Ele morreu 11 dias depois.

Cento e onze - Já em novembro de 2015, cinco jovens negros foram executados por policiais militares em Costa Barros, Zona Norte da capital fluminense. O carro onde estavam Wesley (25 anos), Wilton (20), Cleiton (18), Roberto (16) e Carlos Eduardo (16) foi metralhado de madrugada por policiais - que ainda tentaram plantar uma arma a fim de justificar o crime. Ao todo, teriam sido 111 disparos.

Carlos Henrique do Carmo Souza, pai de Carlos Eduardo, me contou que sua ex-esposa, emocionada durante o velório, abraçou o filho dentro do caixão. Puxada pelos presentes, acabou erguendo o corpo e percebeu que ele estava sem o maxilar. A violência do ataque policial foi tão grande que, nas palavras do pai, "ele ficou todo destruído".

Do total dos mortos em decorrência de intervenção policial, entre 2017 e 2018, 75,4% eram pessoas negras - apesar desse grupo (que reúne as categorias de pretos e pardos, utilizadas pelo IBGE) representar 55% da população. O dado está presente no Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2019, divulgado em setembro. Brancos representam 44,2%, mas foram 24,4% das vítimas da letalidade policial.

No Rio de Janeiro, de acordo com estudo citado pelo anuário, negros contam com 23,5% mais chances de serem mortos do que o restante da população - número que salta para 147% se for considerada apenas a idade de 21 anos, quando há o pico da probabilidade. Já o Índice de Vulnerabilidade Juvenil à Violência e Desigualdade Racial, do próprio Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta que a chance de um jovem negro ser vítima de homicídio no Brasil é 2,5 vezes superior à de um jovem branco.

Ao mesmo tempo, negros são a maioria dos mortos por covid-19 no país. Dados do boletim epidemiológico divulgado pelo Ministério da Saúde do último dia 18, obtidos pelo UOL, mostram que 54,8% dos óbitos registrados são de negros. Brancos ainda são maioria entre os hospitalizados (51,4%), mas minoria entre os mortos (43,1%). O boletim epidemiológico da Prefeitura de São Paulo, do dia 30 de abril, que considerou óbitos confirmados e suspeitos, vai no mesmo sentido, ao afirmar que o risco de morte de negros por covid-19 é 62% maior do que o de brancos.

A questão não é genética, mas de falta de saneamento básico, insegurança alimentar, dificuldade de acesso à assistência médica, o que torna essa população mais vulnerável. A pobreza tem cor. Em São Paulo, no Rio, em todo o país.

A verdade é que a pandemia, ao demonstrar letalidade maior entre os mais pobres, torna-se aliada da estatística policial no Rio de Janeiro. Em comum, um Estado que pouco se importa se e como eles vivem e morrem.

Corta para outra história, de outro tempo, que não é outro tempo. Durante as sessões de tortura realizadas no 36o Distrito Policial (local que abrigou a Oban e, posteriormente, o DOI-Codi, na capital paulista), durante a ditadura, os vizinhos do bairro residencial do Paraíso reclamavam dos gritos de dor e desespero que brotavam de lá. Tente dormir tendo, ao lado, um ser humano sendo moído em paus-de-arara, eletrochoques, "cadeiras do dragão" e tantos outros métodos aplicados por militares e policiais. As reclamações cessavam com rajadas de metralhadora disparadas para o alto, no pátio, deixando claro que aquilo continuaria até que o sistema decidisse parar. Mas o sistema não parava. O sistema nunca para por conta própria.

A noite de Maria Aparecida Costa durou três anos e meio, dos quais dois meses torturada lá. "O ódio. Eu não consigo, até agora, entender de onde vinha tanto, tanto ódio", me explicou. Talvez o ódio surgia da sensação de poder, como ela mesmo suspeitava. De fazer porque se pode fazer enquanto o outro nada pode. De deixar claro quem manda e quem obedece. A metodologia desenvolvida durante esse período e a certeza do "tudo pode" é apontada por especialistas em segurança pública como um dos fatores que provoca vítimas em periferias das grandes cidades. Outra é o racismo estrutural.

Essa quantidade de disparos não reflete erros policiais. Na avaliação de movimentos sociais no Rio, é terrorismo de Estado contra sua própria população. Não há ordens diretas para metralhar negros e pobres da periferia dados pelo comando do poder público. Mas forças de segurança em grandes metrópoles, como o Rio, são treinadas para garantir a qualidade de vida e o patrimônio de quem vive na parte "cartão postal" das cidades, atuando na "contenção" dos mais pobres. Segundo, com um governador e um presidente que apoiam a letalidade policial como política de combate à violência e defender a não-responsabilização de agentes em operações, a percepção da impunidade ajuda a descarregar o pente do fuzil primeiro e só perguntar depois.

A isso, quando o governo acredita ter soberania para decidir quem vive e quem morre, o filósofo camaronês Achille Mbembe deu o nome de necropolítica.

Nesta quarta (20), João Vitor, de 18 anos, negro, foi morto em uma ação das Polícias Civil e Militar, na Cidade de Deus, Zona Oeste do Rio. Naquele momento, voluntários distribuíam cestas básicas para aliviar o sofrimento de famílias pobres por conta da covid-19. A polícia acusa o morto de ser criminoso. Já o jovem morto não poderá nunca mais dar sua versão dos fatos.