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Leonardo Sakamoto

Maquiagem de números é nova estratégia do governo no combate ao coronavírus

Enterro coletivo é feito em cova comum aberta por trator no Cemitério Nossa Senhora Aparecida em Manaus - Edmar Barros/Futura Press/Estadão Conteúdo
Enterro coletivo é feito em cova comum aberta por trator no Cemitério Nossa Senhora Aparecida em Manaus Imagem: Edmar Barros/Futura Press/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

06/06/2020 02h53Atualizada em 06/06/2020 13h41

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O Ministério da Saúde já estava sendo criticado por atrasar a atualização diária sobre a covid-19 (dificultando sua divulgação nos telejornais da noite) e por reduzir a transparência no acesso aos dados, mudando a forma como eles apareciam no site da instituição. Chegou, aliás, a tirar a página com as informações do ar. Agora, o governo quer recontar o número de mortos porque o atual seria, na sua opinião, "fantasioso ou manipulado".

A declaração foi dada por Carlos Wizard, futuro secretário da Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde à Bela Megale, do jornal O Globo. Para ele, o número atual estaria inflado e mortes eram incluídas na contagem a fim de justificar um aumento no orçamento de prefeitos e governadores.

Até um texugo com sérios problemas de aprendizagem sabe de cor que o drama nas estatísticas da covid-19 no Brasil é o contrário, ou seja, uma gigante subnotificação. Testamos muito pouco, quase nada, em comparação a outras nações. Recente estudo de abrangência nacional realizado pela Universidade Federal de Pelotas apontou que, em grandes cidades, o número real de casos pode ser até sete vezes maior que o oficial.

Mesmo com parte da pandemia nas sombras, o Brasil chegou à vice-liderança mundial no número de infectados (645.771) e ao terceiro lugar em mortes (35.026) - com chance de terminar essa primeira onda de contaminação em primeiro.

Criticado em todo o mundo pela ausência de liderança e de planejamento diante da pandemia, o governo Bolsonaro pode ter encontrado uma forma de reduzir a quantidade de casos de coronavírus: torturar os números até que eles gritem o que ele deseja ouvir.

Na manhã deste sábado (6), o Ministério da Saúde - em nota que circulou pelas redes sociais do presidente - justificou-se por ter passado a divulgar apenas as mortes registradas nas últimas 24 horas e não mais o total: "ao acumular dados, além de não indicar que a maior parcela já não está com a doença, não retratam o momento do país" (sic). E afirmou que mover a divulgação para às 22h tem o objetivo de "evitar subnotificação" - apesar dos Estados informarem o governo federal horas antes. Seria mais honesto dizer que a ideia é não causar constrangimentos ao governo.

Em abril, alertei aqui na coluna que a substituição do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, por outro nome mais palatável para as preocupações eleitorais de Jair Bolsonaro trazia, além da preocupação sobre o afrouxamento no combate ao coronavírus, uma questão crucial de transparência: a contagem de vítimas. E afirmei que era grande a chance, sob nova gestão, dos números serem manipulados para "caberem" na narrativa do presidente da República. Dito e feito.

Claro que o Congresso Nacional, o Tribunal de Contas da União (TCU) ou outro órgão dos Poderes Legislativo ou Judiciário pode receber os dados das Secretarias Estaduais de Saúde, diariamente, organizar e divulgar. A questão é que, se o governo levar a cabo o seu intento de recalcular os mortos, irá criar duas fontes de dados, gerando confusão. E, convenhamos, desinformação é a zona de conforto de Jair e aliados.

Por mais que os dados estejam subdimensionados, é o que temos para traçar políticas públicas visando ao enfrentamento. Sem um mínimo de confiabilidade neles, é como construir um prédio totalmente no escuro.

Não é preciso ser nem o supracitado texugo para entender que um país deve fornecer dados confiáveis a respeito de todos os aspectos da vida cotidiana, a fim de que pessoas, organizações e empresas tomem decisões baseadas na realidade.

O governo Bolsonaro, contudo, tem um histórico de briga com números quando estes lhe são desfavoráveis. O fato de o país contar com institutos de pesquisa excepcionais vale muito pouco para um presidente que rejeita a ciência e trabalha de acordo com suas necessidades pessoais. Consequentemente, para ele, o problema nunca é a febre, mas o termômetro.

Já disse aqui, mas é sempre bom lembrar: o presidente já afirmou que a metodologia de cálculo de desemprego do IBGE estava errada porque não concordava com ela. O general Augusto Heleno, ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, disse que as taxas de desmatamento eram manipuladas e infladas porque não concordava com elas. Osmar Terra, então ministro da Cidadania, disse não confiar em pesquisas da Fiocruz, instituição de renome internacional - que, hoje, é fundamental no combate à pandemia, porque não concordava com elas. O chanceler Ernesto Araújo não acredita em mudanças climáticas e afirmou que o aumento da média da temperatura global ocorreu porque estações de medição de temperatura que estavam no "mato" hoje estariam no "asfalto". O próprio ministro da Economia, Paulo Guedes, menosprezou o questionário do Censo.

Quando o desmatamento na Amazônia mostrou um salto no ano passado, Bolsonaro disse que tinha a "convicção" de que dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais eram "mentirosos". Mas o mundo viu que o ano de 2019 representou um aumento vergonhoso no ritmo de perda de cobertura florestal, em meio à necessidade de mitigar os impactos do aquecimento global. E, em 2020, os números do INPE já mostram nova disparada.

Políticos pouco afeitos à democracia, quando colocados contra a parede, tendem a reduzir a transparência de informações às quais a sociedade tem acesso a fim de adaptar a realidade à sua narrativa. Quebrando o "termômetro", o presidente vai conseguir com que o coronavírus seja realmente uma "gripezinha" ou "resfriadinho".

Há ditaduras que disfarçam melhor.