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Leonardo Sakamoto

Postar vídeo de celular se tornou arma contra torturadores que vestem farda

13.jun.2020 - PMs flagrados agredindo jovem na zona norte de São Paulo - Reprodução
13.jun.2020 - PMs flagrados agredindo jovem na zona norte de São Paulo Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

14/06/2020 04h41

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Criminosos de farda torturaram um jovem, na madrugada deste sábado (13), na periferia norte de São Paulo. As palavras parecem duras, mas é a melhor descrição considerando a situação e a trama montada para encobri-la. Se não fosse um vídeo que viralizou nas redes sociais mostrando chutes, socos e cacetadas em um rapaz rendido, teria prevalecido a versão apresentada na delegacia pelos policiais militares de que ele caiu e se machucou.

As imagens não são novidade e fazem parte do absurdo cotidiano de quem mora em um bairro pobre de cidade grande. Tampouco surpreende a reação doentia de uma parte da sociedade, que goza ao ver agressões policiais.

Mas as mesmas redes sociais e aplicativos de mensagens que circulam palavras de apoio a esse comportamento abjeto, também possibilitam que denúncias circulem. Com isso, temos acesso aos fatos reais e não ao discurso oficial. E, com isso, há uma chance, mesmo que pequenina, de que os responsáveis sejam expulsos da corporação e presos.

Já faz um tempo que a popularização de smartphones com câmeras tem sido uma aliada na denúncia de crimes cometidos por policiais não só aqui, mas em outros lugares.

O exemplo mais recente foi a tortura e morte de George Floyd por um policial branco, em Minneapolis - o que desencadeou a mais intensa e importante série de protestos raciais, em décadas, nos Estados Unidos e no mundo. O sufocamento do homem negro foi gravado e, em pouco tempo, estava empurrando pessoas para as ruas. Em meio aos protestos, outro vídeo mostrou quando policiais empurram um homem de 75 anos que caiu, bateu com a cabeça e teve um dano cerebral. Antes das imagens, tentou-se vender a versão de que ele tropeçou.

Tanto no Brasil quanto nos EUA, há o estranho fenômeno de pessoas caírem sozinhas quando estão diante de policiais, ocasionando graves ferimentos.

Outro exemplo ocorreu em 1º de dezembro do ano passado, quando uma ação violenta da PM levou à morte de nove jovens durante um baile funk na comunidade de Paraisópolis, em São Paulo. Os vídeos gravados pelos frequentadores da festa e por moradores da favela de dentro de suas casas foram fundamentais para desmentir a narrativa das forças de segurança.

Em outro vídeo de brutalidade policial que ganhou as redes sociais, um homem rendido e algemado é agredido por PMs em Barueri, município da Grande São Paulo, na noite desta sexta (12). Vizinhos que se aproximaram para ajudar a vítima e gravar a cena também foram agredidos pelos policiais.

Os envolvidos nos casos desta sexta e sábado foram, segundo o governo, afastados do policiamento de rua. A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo lamentou o que chamou de "excessos registrados nas ações policiais" e que isso não condiz com o comportamento da maior parte dos PMs.

É fato que não se pode confundir a maioria honesta da corporação com sua banda podre. Mas também é um erro achar que é um "excesso" pontual. Pois isso não é desvio, mas método.

Entre o espancamento e o boletim de ocorrência na delegacia do caso na Zona Norte, houve um espaço de seis horas - de acordo com reportagem de Luís Adorno, aqui do UOL. E, na delegacia, a vítima confirmou a versão dos algozes. Isso vai ao encontro do modus operandi da banda podre da PM: circular com suspeitos em viaturas para esperar que morra em decorrência de ferimentos ou convencê-lo a contar uma mesma versão da abordagem. O delegado, que havia feito um BO de desacato e resistência, acrescentou tortura e falso testemunho - após o vídeo entrar nos trending topics.

A tortura não nasceu no Brasil com a polícia, nem com os militares da ditadura. Mas a metodologia desenvolvida no período autoritário e aprimorada após a redemocratização, continua provocando vítimas nas periferias das grandes cidades. Tudo isso alimentado com a certeza do "tudo pode", passada por governos estaduais que não controlam ou pouco comandam suas polícias.

Policiais não são monstros alterados por radiação para serem insensíveis ao ser humano. Não é da natureza da maioria das pessoas que decide vestir farda tornar-se um psicopata. Elas aprendem a agir assim. No cotidiano da instituição a que pertencem, na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores.

Não há ordens diretas para espancar negros e pobres da periferia. Mas nem precisaria. As forças de segurança em grandes metrópoles são treinadas para, primeiro, garantir a qualidade de vida e o patrimônio de quem vive na parte "cartão postal" das cidades, atuando na "contenção" dos mais pobres. E, segundo, com presidentes e governadores apoiando a letalidade policial como política de combate à violência, a percepção da impunidade ajuda a agir sem pensar nas consequências.

Gravar e postar intervenções policiais violentas, identificando placas de viaturas e os rostos dos envolvidos, se tornou um dos principais atos de resistência a uma parte do Estado que enxerga pobre como inimigo. Tirar das sombras e jogar esse comportamento deturpado à luz do dia não resolverá tudo, claro, mas é um bom começo.