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Leonardo Sakamoto

Entregadores de app têm jornada de 64,5h semanais na pandemia, diz pesquisa

Manifestantes ocupam a avenida Paulista, em São Paulo, durante protesto realizado por entregadores de aplicativos, no dia 01 de julho - Ettore Chiereguini/ Agif - Agência de Fotografia/ Estadão Conteúdo
Manifestantes ocupam a avenida Paulista, em São Paulo, durante protesto realizado por entregadores de aplicativos, no dia 01 de julho Imagem: Ettore Chiereguini/ Agif - Agência de Fotografia/ Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

06/08/2020 04h00

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Por Vitor Filgueiras e Renata Dutra, especial para a coluna*

Trabalhadores que têm na entrega por aplicativos a única ocupação possuem jornada de semanal 64,5 horas ou 10 horas e 24 minutos por dia. Em média, atuam 6,16 dias por semana, sendo que 40% deles trabalham todos os dias. Considerando a jornada normal de 44 horas, é como se fizessem 20 horas extras todas as semanas.

A informação é de pesquisa inédita realizada pela Faculdade de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que acompanhou 103 entregadores (72 motociclistas e 31 trabalhadores em bicicletas) nas cinco regiões do Brasil, contemplando 38 cidades de 19 estados. A idade varia entre 18 e 50 anos, e, em média, trabalham para as plataformas de aplicativos há dez meses.

Mobilizações de entregadores vinculados aos chamados aplicativos ganharam destaque durante a pandemia do coronavírus, incluindo duas paralisações nacionais em julho. Entre as demandas principais, aumento dos rendimentos e melhoria das condições de trabalho nessa ocupação.

Para 70% deles, esse é seu único trabalho. Os demais têm mais de um serviço, sendo a entrega ocupação principal ou subsidiária. Considerando todos os entrevistados (incluindo os que estão nos apps em tempo parcial), a jornada média semanal é de 55 horas, distribuídas em 5,8 dias.

Os trabalhadores acompanhados pela UFBA apontaram uma queda de 18,7% em seus rendimentos líquidos (descontados gastos como combustível, manutenção de veículos, internet) durante a pandemia. Considerando o rendimento líquido para um mês de trabalho, 44% dos entregadores conseguem tirar menos do que um salário mínimo e 85%, menos do que dois salários mínimos.

Como suas jornadas são muito extensas e o descanso semanal é raro, o pagamento recebido por hora é mais adequado para calcular a magnitude dos seus ganhos. Nesses termos, 51,7% recebem, por hora, menos do que o equivalente a um salário mínimo. A situação é ainda pior quando avaliados os ciclistas isoladamente, que ao final de um mês de trabalho, com jornada média de mais de 57 horas semanais, conseguem apenas R$ 932 brutos e R$ 701 líquidos.

Isso confirma dados de outras pesquisas. Por exemplo, levantamento da Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista (Remir), realizado em abril, mostrou que 60,3% dos trabalhadores relataram queda dos rendimentos durante a pandemia. Realidade ratificada pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD)-Covid de maio, cujo dados mostram uma queda de 34,8% do rendimento efetivo dos entregadores que se declaram autônomos.

Sentimento de arbitrariedade

Além das longas jornadas e dos baixos rendimentos, os entregadores acreditam sofrer uma pressão intensa e arbitrária para seguir as ordens dos "aplicativos".

Por exemplo, 82% dos entrevistados conhecem alguém que já foi bloqueado (o que significa uma suspensão temporária do trabalho) e 39% sofreram diretamente essa punição, dos quais quase metade (45%) não conseguiu sequer saber o motivo do bloqueio.

Sem contato pessoal, as empresas tomam decisões unilaterais e costumam enviar mensagens-padrão genéricas quando questionadas pelos trabalhadores. Não bastasse tudo isso, 33% dos entregadores informaram terem sofrido acidente no trabalho atual. Somados aos que conhecem alguém que sofreu acidente, são 70% dos entrevistados. Dos acidentados, 83% criticaram a falta de apoio da empresa ou foram bloqueados após o infortúnio.

O falso dilema da carteira assinada

Apesar desse cenário de precarização, um pouco mais da metade (54,4%) dos entregadores afirma não querer ter carteira assinada. Desses, 81% apontam como razão para não quererem a formalização do contrato de emprego a possibilidade de piora nos rendimentos e a redução da sua liberdade e flexibilidade que acreditam que a celetização provocaria.

Isso, contudo, não encontra respaldo nos fatos. Os entregadores com carteira assinada têm rendimentos superiores aos contratados como autônomos (PNAD Covid), seja antes (8% acima) e ainda mais durante a pandemia (56% superior). Isso sem contar os demais direitos da CLT que aumentam a renda (férias, 13º salário, FGTS).

Empregados com carteira têm jornadas com limites, descanso semanal e férias, ao passo que os entregadores "autônomos" vivem jornadas semelhantes às da revolução industrial. E enquanto a CLT tem regras para a aplicação de punições e dispensa dos trabalhadores, as plataformas punem e desligam trabalhadores de modo unilateral.

Portanto, os dados e as próprias regras da regulação revelam que as sonhadas liberdade e flexibilidade são menores quando entregadores não têm carteira assinada. Ademais, reclamações dos entregadores, como em relação aos acidentes de trabalho sofridos, têm na legislação do trabalho proteção expressa aos empregados.

Assim, o reconhecimento do vínculo de emprego é um caminho objetivamente mais eficaz para o atendimento das demandas que têm sido apresentadas pelos entregadores. Isso acontece porque, mesmo enfraquecida por sucessivos ataques, a CLT impõe limites ao poder das empresas, prevendo condições mínimas aos trabalhadores. Ela existe e estabelece um mínimo porque regula uma relação entre partes desiguais. Sem ela, não há limites e, por isso, há tendência à exploração extrema dos trabalhadores.

Entregadores carregam Brasil nas costas

O trabalho de transporte e entrega de mercadorias - particularmente alimentos - por motos é antigo, mas essa ocupação tem crescido nos últimos anos. Entre os primeiros trimestres de 2015 e 2020, segundo a PNAD, o número de motociclistas ocupados passou de 459 mil para 693 mil.

Esse incremento parece ter se intensificado com a pandemia, quando a atividade passou a ser essencial para o consumo de grande parte da população. Em maio deste ano, motoboys e entregadores, ocupações incluídas na PNAD-Covid, somaram 917 mil postos de trabalho.

Com a crise sanitária, empresas de entrega têm ganhado muito dinheiro, e talvez ganhem por mais tempo, pois o vírus pode promover uma mudança estrutural nos modos de consumo da população. Contudo, dados mostram que os trabalhadores do setor não estão se beneficiando dos frutos dessa expansão.

Análise - Direito mínimos são negociáveis?

Um projeto de lei apresentado pela deputada federal Tábata Amaral (PDT-SP) [que criaria uma nova regulação para a relação entre entregadores e empresas, estipulando remuneração mínima e alguns benefícios de seguridade social e criando uma figura entre o celetista e o autônomo] pode generalizar o modelo das plataformas de aplicativos para todos os setores, rebaixando as condições mínimas da CLT. Ignora, assim, que já existe na legislação a previsão para os casos em o que trabalhador "escolhe" quando trabalhar: o contrato intermitente. Instrumento sem dúvida precário, mas que, ao menos, reconhece o vínculo de emprego.

As ideias de empreendedorismo, de liberdade, de flexibilidade, de que o trabalhador gerencia sua própria atividade não passam de uma estratégia das empresas para, transferindo custos e riscos, tornar mais vulnerável o trabalhador, e, assim, mais subordinado e mais facilmente gerenciável. Ao mesmo tempo, a narrativa empresarial busca convencer e legitimar a gestão e essa forma de contratação frente às instituições, à academia, e aos próprios trabalhadores.

Não é a opinião das pessoas que as torna empregadas. Sobretudo quando há deturpações sobre o que é um vínculo empregatício e quais as suas consequências. Se o trabalhador obedece ou depende de um patrão e, portanto, está em uma relação em que há exercício de poder, ele é empregado. E é evidente que os entregadores obedecem nos mínimos detalhes e sofrem punições se não o fizerem.

O critério para aplicar as leis do trabalho não é individual e isolado, mas consiste em decisão coletiva e democrática de uma sociedade civilizada para impedir que a assimetria das relações cause exploração sem limites. A piora das condições de trabalho permitida para um sujeito rebaixa a condição dos demais.

É fundamental ouvir os entregadores. Mas gostaríamos de qualificar a pergunta a eles destinada: quais direitos e condições querem, além dos mínimos que a CLT já lhes reserva?

(*) Vitor Araújo Filgueiras é professor de Economia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e professor visitante da Universidade Complutense de Madri, na Espanha. Renata Dutra, professora da Direito do Trabalho da Universidade de Brasília (UNB).