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Leonardo Sakamoto

Bolsonaro põe país em risco ao atacar vacina obrigatória só para animar fãs

Colunista do UOL

02/09/2020 12h39

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Jair Bolsonaro defendeu que "ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina" nesta segunda-feira. Abre, dessa forma, uma nova fase na guerra política em que transformou a saúde pública brasileira desde o início da pandemia. Ignora que obrigatoriedade de vacina não é invadir casas como no passado - o próprio governo já condiciona o pagamento do Bolsa Família à imunização de crianças, por exemplo. O presidente quer, na verdade, inflamar os fãs radicais para reforçar o vínculo com quem protege seu mandato.

Esse discurso soa como música aos ouvidos de um naco de seus seguidores que acredita que a negação à vacinação coletiva é uma forma de resistir ao "Estado opressor". E a um outro grupo que acha que a vacina serve para inocula-los com chips para serem rastreados e controlados a partir de torres de celular 5G chinesas. Uma conspiração com a participação de bilionários, humoristas, Illuminatis, cavaleiros templários e aliens. Sem contar grupos que acreditam, por ideologia ou guiados por notícias falsas, que vacinas são inúteis e servem apenas para enriquecer a indústria farmacêutica.

Quantos estes são? Uma minoria, mas que não é desprezível. De acordo com o Datafolha, em agosto, 9% não tomariam uma vacina contra o coronavírus. Só para efeito de comparação: 7% dos ouvidos pelo instituto em outra pesquisa, em julho do ano passado, afirmam que a Terra é plana. Os números são menores que o montante de bolsonarismo-raiz, que está com o presidente para o que der e vier, que é de 12%.

Perceba, contudo, que Bolsonaro não veio dizer que "ninguém pode obrigar ninguém a pagar impostos". Impostos, esse instrumento do tal Estado opressor contra a liberdade do indivíduo. Ou que "ninguém pode obrigar ninguém a prestar serviço militar obrigatório" - a apesar da falta de sentido que serviço militar obrigatório faça hoje.

Mas claro que não falaria. Primeiro porque, se fizesse isso, seria devorado em poucos minutos em Brasília. Além disso, nem o mais inocente de seus sócios ultraliberais acredita mais que, no íntimo, sua visão de país seja de um Estado mínimo. Pelo contrário, seu governo pode não ser bom de política de saúde, de emprego, de educação, de moradia, de transporte, de cultura, de emprego... mas é craque em monitorar cidadãos e produzir dossiês.

Quando se fala em obrigatoriedade da vacina, isso não significa picar cidadãos à força, como acontecia há mais de cem anos. Mas restringir acesso a determinados direitos, por exemplo. O próprio Ministério da Cidadania afirma que manter a vacinação das crianças em dia é condicionante para continuar recebendo o Bolsa.

A questão é outra. Bolsonaro critica a obrigatoriedade da vacina para causar barulho e inflamar milícias ultraconservadoras e anticiência a fim de reforçar seu vínculo com elas - até aqui, elas têm garantido proteção a seu mandato. E como, nesse contexto, quanto mais ruído melhor, nega-se a estabelecer um diálogo honesto e claro com a população.

Ele poderia fazer o contrário. Explicar o que é uma vacina, por que ela deve ser tomada, quais os ganhos para a coletividade, mas também os riscos e os eventuais efeitos colaterais. Pois, diante de informações que dizem respeito à sua vida, o indivíduo tende a atuar de forma racional e pragmática. O indivíduo não é burro, apesar de ser tratado como tal por seus governantes.

O objetivo da comunicação de Bolsonaro na pandemia é confundir

Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia, caso de sucesso no combate ao coronavírus, estabeleceu uma comunicação franca, aberta e constante com a população, explicando o que o governo faria e como. Os cidadãos entenderam e seguiram as recomendações, fazendo com que seu país retornasse à vida (quase) normal de forma mais rápida e sem tantas baixas.

Por aqui, ao contrário, o presidente da República usou cadeia nacional de rádio e TV para menosprezar a doença, chamando uma pandemia que já matou mais de 122 mil pessoas de "gripezinha" ou "resfriadinho". E, sistematicamente, promoveu aglomerações, dando ele mesmo o mau exemplo em manifestações que pediam o fechamento do Congresso e do STF, afirmando que as quarentenas não funcionam e que bom mesmo é a cloroquina, remédio sem eficácia comprovada.

A comunicação, portanto, não foi pelo bem do cidadão, mas da guerra particular travada por ele em nome de sua reeleição.

Não à toa, a Secretaria de Comunicação (Secom), percebendo que a declaração de Bolsonaro atingiu em cheio as redes sociais e os seus grupos de WhatsApp, reforçou o recado.

Usou um canal institucional do Estado brasileiro para dizer que ninguém será obrigado a tomar vacina. Ou seja, utilizou recursos públicos em uma plataforma pública para bombar posicionamento ideológico do presidente. Pior, para cometer um crime contra a saúde pública. Diante da repercussão negativa, a Secom voltou a postar. Disse que "o Brasil é uma democracia, o governo é liberal e seu presidente não é um tirano".

Ironicamente, o próprio governo Bolsonaro teve a iniciativa de um projeto de lei para permitir a autoridades que determinem vacinação compulsória, da mesma forma que possam obrigar a realização de exames médicos, testes, coletas de amostrar e tratamentos médicos sobre a covid.

Conforme detalhou o UOL Comprova, serviço de checagem do UOL para desinformação, a lei a 13.979, de 2020, resultado desse projeto, foi sancionada por Jair Messias e também assinada pelos então ministros da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, e da Justiça, Sergio Moro.

Ou seja, Bolsonaro contradiz Bolsonaro. Não é descuido, mas parte de uma estratégia de comunicação. Fala para públicos diferentes com mensagens diferentes. Transporta o comportamento de comunicação microsegmentada das redes sociais para a vida off-line.

Direito à saúde da coletividade limita a liberdade de se fazer o que quiser

Não existem direitos absolutos. Nem o direito à vida é, caso contrário não haveria a legítima defesa. Portanto, é um erro afirmar que a liberdade do indivíduo de não se vacinar é comparável à garantia de saúde coletiva e de segurança sanitária de toda sociedade.

De acordo com Eloísa Machado, professora da FGV Direito São Paulo e coordenadora do centro de pesquisas Supremo em Pauta, "uma pandemia é um problema coletivo cuja solução é também coletiva. A vacinação, nesse caso, é forma de garantia de direitos".

Em uma comparação simplificada, ela afirma que uma pessoa não pode descumprir medidas básicas sanitárias em um restaurante só porque têm direito à liberdade e à livre iniciativa.

Por que isso é aceito então com a saúde púbica? O movimento antivacina nos últimos anos levou a uma pequena parte da população a evitar a imunização e, isso aumentou o número de casos de sarampo. Uma doença grave que poderia ser controlada se teorias da conspiração não fossem levadas a sério.

A situação nas escolas só não foi pior por que a maioria dos pais e mães é racional, vacinou seus filhos e criou um colchão de proteção sanitário aos filhos daqueles que se opõem à imunização.

Já teremos que torcer para que a efetividade das vacinas seja o suficiente para imunizar a população - o que depende de uma série de fatores do enfrentamento a uma doença nova. Agora, temos um presidente da República incendiando negacionistas em nome de seus interesses políticos. Com isso, nossas chances caem consideravelmente.