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Leonardo Sakamoto

Ataque às Católicas pelo Direito de Decidir é ensaio para Estado teocrático

Ato de movimentos feministas convocado por Facebook pede a legalização do aborto em São Paulo - Alice Vergueiro - 08.dez.2016/Folhapress
Ato de movimentos feministas convocado por Facebook pede a legalização do aborto em São Paulo Imagem: Alice Vergueiro - 08.dez.2016/Folhapress

Colunista do UOL

28/10/2020 13h29

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O Tribunal de Justiça de São Paulo mostrou que está "sobrando tempo" e faltando bom senso no sistema de Justiça ao impor censura ao nome de uma organização de defesa dos direitos das mulheres. O detalhe é que a entidade existe no Brasil desde 1993, ou seja, há 27 anos. Mas só agora, em meio a um ensaio de implementação de Estado teocrático, é que será obrigada a mudar o nome.

Os desembargadores da 2ª Câmara de Direito Privado decidiram que a ONG Católicas pelo Direito de Decidir, formada, veja só, por mulheres católicas, não poderá mais utilizar o termo "católicas" no nome.

Atendendo a uma ação de uma entidade conservadora, o relator do caso, José Carlos Ferreira Alves, afirmou que não é "minimamente racional e lógico o uso da expressão 'católicas' por entidade que combate o catolicismo concretamente com ideias e pautas claramente antagônicas a ele".

A organização feminista, como o nome já diz, defende os direitos reprodutivos das mulheres, incluindo o direito ao aborto nos casos previstos pela Justiça (estupro, risco de morte da gestante, anencefalia do feto).

Em sua crença pessoal, os desembargadores podem discordar dessa linha de atuação, mas suas decisões não podem ferir direitos civis por cercear a liberdade de expressão e de associação.

Se há um grupo de CATÓLICAS e elas se reúnem com um objetivo específico, e nem a Cúria Metropolitana de São Paulo, nem Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, nem o Vaticano reivindicaram na Justiça a "marca registrada", quem é a organização conservadora ou os magistrados para dizerem que elas não podem se autodenominar católicas? Até onde se sabe, não foram excomungadas.

O desembargador, contudo, afirma que pode "a associação requerida defender seus valores, inclusive o aborto, como bem entender, desde que utilize nome coerente". O TJ-SP virou sommelier da fé alheia.

Não é "minimamente racional e lógico" um magistrado receber acima do teto do funcionalismo público, ou seja, o salário de ministros do Supremo Tribunal Federal - R$ 39,2 mil. Mas isso não parece provocar o mesmo assombro, pois é mais difícil encontrar quem nunca foi além do limite do que o contrário.

Mas uma sociedade em que uma menina de dez anos (que engravidou após ser estuprada durante quatro anos pelo próprio tio) é ameaçada de morte por fundamentalistas por ela desejar interromper a gestação, em que os médicos que realizaram o procedimento também foram ameaçados de morte e sitiados no hospital em que trabalhavam, em que o governo federal mandou representantes para tentar dissuadir a família da menina de realizar o aborto, já é uma sociedade em que mulheres são tratadas como cidadãs de segunda classe.

Nesse contexto, a negação do direito à identidade é apenas mais um passo em direção ao abismo.

Algumas decisões judiciais, por outro lado, nos levam a crer que o sistema de Justiça é que deveria utilizar "nome coerente" com a natureza que, por vezes, assume. Tipo, Clube do Bolinha, Patriarcado ou, nos piores casos, Handmaid's Tale.

A decisão pode ser alterada após recurso. O que será bem mais fácil do que alterar o curso do país.