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Leonardo Sakamoto

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Câmara pede prisão de Gentili quando deveria votar impeachment de Bolsonaro

Colunista do UOL

03/03/2021 12h37

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A Câmara dos Deputados pediu ao Supremo Tribunal Federal a prisão de Danilo Gentili por conta de um tuíte do humorista. Compararam o caso com a invasão do Congresso dos Estados Unidos, em janeiro, e com a situação de Daniel Silveira (PSL-RJ), preso por ordem do STF e mantido preso pelos colegas parlamentares.

Claro que o direito à liberdade de expressão tem limites, como qualquer outro direito. Mas a comparação entre os casos e o pedido de prisão do humorista são descabidos, pois representam situações distintas. Encarar como a mesma coisa, pode trazer consequências ruins ao debate público.

Considero a postagem de Gentili infeliz e violenta. Disse ele no dia 25 de fevereiro: "Eu só acreditaria que esse país tem jeito se a população entrasse agora na Câmara e socasse todo deputado que está nesse momento discutindo PEC de imunidade parlamentar". O humorista apagou a publicação e reconheceu que críticas de alguns deputados a ela eram justas.

Naquele momento, discutia-se a chamada "PEC da Impunidade", que amplia a blindagem de deputados e senadores e que começou a tramitar em ritmo alucinado pelas mãos do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), depois da prisão de Silveira.

Mas os parlamentares que se sentiram atingidos podem processar o humorista pelas vias legais, dando espaço para que se defenda. E, em caso de condenação, que ele quite a dívida com a Justiça. Particularmente, não vejo enquadramento em discurso de ódio, como defendem alguns deputados.

Tratemos coisas diferentes como diferentes:

Primeiro: a jurisdição do Supremo Tribunal Federal é para julgar quem tem foro privilegiado por crimes cometidos no mandato. Os demais cidadãos devem ser processados na justiça comum, bem como os políticos com foro por crimes que não têm a ver com o mandato. Ao jogarem Gentili para o STF, a Câmara quer fazer parecer que o que Silveira fez não é tão grave.

Segundo: o que o deputado Daniel Silveira fez se insere em ataques reiterados e direcionados aos ministros do Supremo Tribunal Federal. Ele já era investigado no caso dos atos antidemocráticos. A fala de Gentili é diferente, portanto, da natureza da fala de Silveira.

Quem me acompanha sabe que já critiquei o STF por abrir inquéritos por canetada, sendo a vítima e o juiz. Mas a prisão do deputado correu em meio a um inquérito.

Além disso, não importa apenas o conteúdo da fala, mas também quem fala. Por mais que o humorista tenha milhões de seguidores, ainda assim ele não é um político que ocupa um cargo público. Apesar de contarem com liberdade de tribuna, eleitos são obrigados a andar dentro de balizas definidas pela Constituição sobre o que é válido e o que não é no jogo político.

Tanto o então presidente Donald Trump (que incitou milhares de golpistas de extrema direita e supremacistas brancos para cima dos congressistas no Capitólio a fim de evitar a confirmação da eleição do vencedor das eleições, Joe Biden) quanto o deputado federal Daniel Silveira (que divulgou um vídeo nas redes sociais ameaçando ministros do Supremo, ou seja, membros de outro poder, com violência física e atacando a democracia) não são cidadãos comuns.

Do ponto de vista de nossa legislação, Silveira extrapolou as balizas garantidas aos políticos. Trump também, mas ele é problema da lei norte-americana.

Contudo, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) passa por cima dos limites constitucionais sistematicamente. Sua participação em atos antidemocráticos que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo e a prisão de seus membros, com turbas pedindo um novo AI-5, em março do ano passado, foi uma clara incitação contra o Judiciário e o Legislativo pelo chefe do Poder Executivo. Isso é o caminho do autogolpe.

Apesar dos inquéritos abertos no Supremo Tribunal Federal pelo próprio Supremo para investigar esses atos, o presidente não foi diretamente incomodado pela Câmara.

Da mesma forma, o tuíte do então comandante do Exército, general Villas Bôas, pressionando publicamente o STF antes do julgamento de um habeas corpus de Lula, em abril de 2018, teve um caráter de ameaça pública.

O HC acabou negado e o ex-presidente foi preso, facilitando a eleição de Bolsonaro, que guarda segredos com o general. Mas com exceção das declarações do então ministro Celso de Mello, que rebateu a postagem na época, ficou por isso mesmo também. Caso Villas Bôas não estivesse usando farda, mas sim pijama, seria diferente. Não haveria o peso de uma instituição com uma tropa por trás.

Usuários de redes sociais devem ter responsabilidade e são passíveis de punições por seus atos. Mas não atropelando a lei.

A discussão sobre a pertinência do flagrante usado para a prisão de Silveira é justa. Da mesma forma, os debates sobre os limites do humor também. Mas usar o caso para atingir cidadãos, independentemente de quem sejam ou falem, é um absurdo.

Não estou defendendo Gentili, defendo o respeito à Constituição. Da mesma forma que já critiquei prisões ou a derrubada de contas em redes sociais de bolsonaristas neste espaço antes. Por mais que discorde do que alguém diz, não se melhora o ambiente de debate público espancando as leis. O único caminho é a Justiça, por mais capenga e maltratada ela seja.

Por fim, com 1.726 mortes por covid-19 registradas em um só dia e a população passando fome sem auxílio emergencial, a Câmara se dedica à autopreservacão, seja através da PEC da Impunidade, seja por acionar o STF para uma coisa como essa. Enquanto isso, não age para impedir a tragédia construída pelo governo. Não à toa muita gente lá se dá tão bem com o presidente da República.