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Burocracia trava ratificação de tratado sobre escravidão e afeta negócios
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O Brasil está perdendo a chance de apresentar um diferencial para investidores e compradores porque não ratificou, até agora, um tratado internacional sobre prevenção ao trabalho escravo. O mais curioso é que o país já cumpre o que está escrito no documento. Aliás, somos um dos exemplos usados para a construção do texto.
A culpa, ao que tudo indica, não é do governo, uma vez que não há entraves para que ele seja aprovado, mas sim de um processo burocrático que obriga a emissão de sucessivos pareceres e recomeça o processo em trocas de ministros - processo que poderia ser revisto.
A Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho, aprovada em 1930, define as proibições do trabalho forçado. Com o tempo, chegou-se à conclusão de que era necessário avançar para ajudar a proteger as vítimas e garantir a elas acesso à Justiça e à oportunidades de reconstruir suas vidas.
Com isso, em 2014 a Conferência Internacional do Trabalho aprovou o Protocolo sobre a Convenção 29, para que governos tomem medidas para prevenir trabalho escravo. Esse novo documento atingiu a meta inicial de 50 países ratificando o texto no último dia 17 de março, com a entrada do Sudão.
Chile, Argentina, Suriname e Peru já ratificaram na América do Sul. Mas o Brasil, que foi fundamental para a sua aprovação e serviu como uma das principais referências para o texto por sua experiência na área, acabou arrastando demasiadamente a ratificação.
Expoentes do atual governo já deram parecer positivo para o prosseguimento do processo. Por exemplo, a ministra da Mulher, Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, enviou ofício ao Ministério da Relações Exteriores, datado de 27 de agosto de 2020, com seu aval. As áreas ligadas ao tema de trabalho no Ministério da Economia também.
Desde 1995, o Brasil possui um sistema público de verificação de denúncias, libertações de pessoas e pagamento de salários e direitos atrasados, tendo resgatado quase 56 mil pessoas. Por isso, a coluna apurou que, na sede da OIT e entre missões diplomáticas de outros países, em Genebra, era grande a expectativa de que o país fosse um dos primeiros a ratificar o documento.
Nos pareceres do atual governo sobre o tratado que a coluna teve acesso, a análise das áreas técnicas é de que "o país já se mostra extremamente coadunado com as medidas previstas no protocolo, sendo referência no cenário internacional". E que ele não se enquadra em uma agenda punitiva, mas de atendimento às vítimas.
E ainda que "a ratificação reafirmaria o compromisso do Estado brasileiro com a eliminação das formas modernas de escravidão, servindo de incentivo a outros países".
Trabalho escravo é tema de preocupação global entre investidores e compradores
A adesão não significaria mudança de curso, nem aumento de custos, mas traria ganhos ao país.
Os pareceres também trazem o entendimento de que o tema pode ser um diferencial para a oportunidades de investimento.
"Frise-se que, cada vez mais, pautas sociais, tais como erradicação do trabalho forçado, tem estado presentes, de diversas formas, em cláusulas de acordos negociados pelo Brasil, a exemplo dos Acordos de Cooperação e Facilitação de Investimentos", afirma um dos pareceres.
"Desse modo, apoiamos a convergência do Brasil a melhores práticas internacionais em matérias trabalhistas, posto que tal movimento complementa e reforça os atuais esforços de inserção econômica internacional empreendidos" pelo governo.
A coluna conversou com um representante de um fundo bilionário sediado em um país nórdico, que pediu para não ser identificado por contar com investimentos no país. Ele afirmou que as questões ambientais, como queimadas e desmatamento ilegal, não são as únicas preocupações de sustentabilidade por parte de seu fundo.
"A maneira com a qual um país assume compromissos para combater formas contemporâneas de escravidão influencia nossa tomada de decisões", diz. "Países que demonstram esses compromissos publicamente partem com um diferencial em relação aos outros por reduzir os riscos do investimento."
Trâmite do tratado leva tempo, mas regras não ajudam
O problema é que sempre que há uma troca de ministros ou de governo ou mesmo uma reestruturação ministerial, o processo volta algumas casas ou ao início. E sem os pareceres, o Poder Executivo não envia o texto ao Congresso Nacional para ser ratificado.
O Ministério das Relações Exteriores afirmou à coluna que a exposição de motivos interministerial (os tais pareceres) para submissão do tratado ao Congresso Nacional foi encaminhada pelo Itamaraty à Presidência da República em dezembro de 2018, durante a gestão Michel Temer (MDB). Mas, ao iniciar o governo Jair Bolsonaro (sem partido), eles foram para reavaliação.
"As consultas internas para deliberar sobre o Protocolo à Convenção 29 foram retomadas em 2019, levando em conta a nova estrutura organizacional do governo. Na perspectiva do Itamaraty, não há óbice para o prosseguimento do processo de ratificação do instrumento", afirma o ministério.
"Cabe, contudo, análise substantiva das demais pastas competentes antes de decisão final do governo", conclui.
Brasil poderia racionalizar internalização de instrumentos internacionais
Análise feita pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) sobre a internalização de instrumentos internacionais pelo Brasil revelou uma série de entraves burocráticos e processos pouco transparentes.
O levantamento descobriu que os trâmites para a entrada em vigor dos acordos assinados pelo país levam, em média, 1.590 dias, ou seja, mais de 4 anos - e muito mais em alguns casos.
Apesar da percepção usual de que a tramitação demoraria mais por conta da apreciação pelo Congresso Nacional, na verdade o principal culpado, segundo o levantamento, é do Poder Executivo.
Justamente pelas etapas redundantes e desnecessárias, criadas paulatinamente a partir de 2010, no governo de Dilma Rousseff (PT), de exigir pareceres técnicos e jurídicos de cada ministério possivelmente envolvido, determinar o reinício do processo sempre que um ministro é trocado, e exigir nova tramitação interna mesmo depois que um acordo internacional é aprovado no parlamento.
Ao contrário do que ocorre no Congresso, onde é possível acompanhar o trâmite e saber sua localização exata, no Executivo essas etapas hoje ocorrem sem qualquer transparência, favorecendo a morosidade e descaso de burocratas.
Não há, portanto, perspectivas para a ratificação.
De acordo com a OIT, o mundo conta com mais de 40 milhões de pessoas sob formas contemporâneas de escravidão, produzindo lucros anuais da ordem de 150 bilhões de dólares.