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Leonardo Sakamoto

REPORTAGEM

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Operação resgata 16 em condição análoga à de escravo em obras da MRV no RS

Trabalhadores foram resgatados em obra da MRV em São Leopoldo (RS) - Divulgação
Trabalhadores foram resgatados em obra da MRV em São Leopoldo (RS) Imagem: Divulgação

Colunista do UOL

23/05/2021 13h14

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Uma operação de fiscalização resgatou 16 trabalhadores de condições análogas às de escravo em dois empreendimentos da MRV Engenharia em São Leopoldo e Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.

A ação, que começou no dia 13 de maio, 133º aniversário da Lei Áurea, foi realizada por auditores fiscais do trabalho do Ministério da Economia, pelo Ministério Público do Trabalho, pela Polícia Federal e pela Defensoria Pública da União.

Em nota à imprensa, a MRV afirmou que "não compactua com nenhuma irregularidade na contratação de colaboradores", que "suspendeu imediatamente o contrato com a empresa de recrutamento citada no caso" e que "apresentou todos os esclarecimentos e documentos que comprovam que os trabalhadores foram contratados de forma regular".

De acordo com a fiscalização, os trabalhadores eram aliciados em cidades do interior do Maranhão usando uma intermediadora de mão de obra. As vítimas tinham que pagar até R$ 500 pela vaga, o que é proibido por lei, e receberam promessas enganosas de salários e condições de trabalho. Ao chegarem no local, viram que a realidade era diferente.

Caso estivessem insatisfeitos com a situação, a empresa não garantia recursos para voltarem às suas cidades de origem. E, como não tinham dinheiro, continuavam trabalhando.

O Ministério Público do Trabalho no Rio Grande do Sul afirmou, em nota, que as vítimas "precisavam pagar a recrutadora e vinham sofrendo descontos em cobrança por uma 'cesta básica', o que diminuía ainda mais as chances de os trabalhadores conseguirem reunir as condições para abandonar o lugar e voltar ao estado".

Além do trabalho forçado, um dos caracterizadores do trabalho escravo contemporâneo, a operação identificou tráfico de seres humanos para exploração laboral. A MRV foi notificada e demandada a pagar os direitos trabalhistas do período desde o deslocamento das vítimas de suas cidades no Maranhão. Dos 16, seis estavam em São Leopoldo e dez em Porto Alegre.

Também foi exigido o pagamento da diferença entre o que foi oferecido no momento do aliciamento e o que vinha sendo efetivamente transferido. E que a empresa custeasse o retorno dos trabalhadores ao Maranhão.

Os resgatados vão receber também três meses de seguro desemprego que é garantido aos resgatados da escravidão desde 2003.

Está prevista, para esta segunda (24), uma audiência de conciliação para a negociação de um termo de ajustamento de conduta entre a MRV e o MPT-RS, que será representado pela procuradora Monica Pasetto.

Resgates em obras da empresa já ocorreram em cinco estados

A MRV afirma que os trabalhadores estão hospedados de forma adequada, próximos ao local de trabalho e com as despesas de estadia e deslocamento assumidas pela empresa.

"A companhia segue colaborando com os órgãos competentes e reitera seu compromisso com o bem-estar de seus funcionários, fornecendo todo o suporte aos envolvidos, tanto para os que optaram por retornar ao estado de origem e nos pediram oportunidades lá, quanto para aqueles que decidiram continuar trabalhando em obras da MRV na mesma cidade em que estavam", afirma em nota.

Também diz que reafirma seu compromisso com a melhoria contínua dos processos de contratação de fornecedores, visando a integridade da cadeia produtiva para que situações como essa não aconteçam.

Não é a primeira vez que a MRV é envolvida em casos de trabalho escravo contemporâneo. Já houve resgates em obras da empresa em Macaé (RJ), em 2014, Contagem (MG), em 2013, Americana e Bauru (SP) e Curitiba (PR), em 2011.

Após seu governo publicar uma portaria que dificultava a libertação de escravizados em outubro de 2017, o então presidente Michel Temer se justificou divulgando quatro autos de infração de irregularidades banais afirmando que isso havia levado aos auditores fiscais a considerarem um caso como "condições degradantes", um dos elementos que caracterizam trabalho escravo segundo o artigo 149 do Código Penal.

Temer, contudo, não divulgou à imprensa os outros 40 autos de infração da mesma fiscalização, incluindo aqueles que tratam de problemas graves como o não-pagamento de salários, alojamentos superlotados e condições inadequadas de higiene. Ou que a fiscalização, naquele momento, já havia sido reafirmada pela Justiça do Trabalho, que condenou o empregador. A obra era em um condomínio sob responsabilidade da MRV em Americana.

A ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, veio a suspender a portaria. E devido à pressão de parlamentares, magistrados, procuradores, sociedade civil, empresários brasileiros e investidores estrangeiros, o governo Temer voltou atrás e publicou outra portaria, revogando a anterior no final daquele ano.

Por duas vezes, a Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), da qual a MRV é associada, questionou o cadastro de empregadores responsabilizados por mão de obra escrava do governo federal, a chamada "lista suja", no Supremo Tribunal Federal.

A primeira ação levou à suspensão da lista suja pelo STF, do final de 2014 até maio de 2016, quando a ação perdeu o objeto devido à atualização da portaria. Em 14 de setembro de 2020, em resposta à segunda das ações movidas pela associação, o STF reafirmou, por 9 votos a 0, a constitucionalidade do cadastro.

O relator, ministro Marco Aurélio Mello, destacou que a "lista suja" não representa sanção, como reclamavam as incorporadoras, mas tem o objetivo de dar publicidade a decisões referentes a ações fiscais em que for constatado trabalho escravo.

Trabalho escravo hoje no Brasil

De 1995, quando o Brasil reconheceu diante das Nações Unidas a persistência do trabalho escravo em seu território e o governo federal criou o sistema nacional de verificação de denúncias, até o final do ano passado, mais de 56 mil trabalhadores foram resgatados segundo dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério da Economia.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

Trabalhadores têm sido encontrados em fazendas de gado, soja, algodão, cana, café, frutas, erva-mate, batatas, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis. A pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada com trabalho escravo desde 1995.