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Leonardo Sakamoto

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Governo quer trocar voto eletrônico auditável por voto impresso corrompível

O ministro da Casa Civil, general Braga Netto  - Agência Brasil
O ministro da Casa Civil, general Braga Netto Imagem: Agência Brasil

Colunista do UOL

23/07/2021 10h20Atualizada em 26/07/2021 16h36

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Mesmo após a forte reação política e social causada pela revelação de que o ministro da Defesa, general Braga Netto, ameaçou o Congresso Nacional pela aprovação do voto impresso, Jair Bolsonaro defendeu novamente a medida, falando de fraudes sem apresentar provas, na noite desta quinta (22).

O irônico é que a introdução da impressão do voto, da forma como o bolsonarismo está propondo, é que traria a possibilidade de corromper uma eleição e não a manutenção do sistema atual.

O presidente continua forçando uma mudança estrutural na eleição de 2022, atropelando o tempo necessário para debates sobre atualizações no sistema de votação, a fim de atender seus interesses pessoais. O problema não é a discussão, mas o atropelamento.

Jair passou a usar o termo "auditável" após falar de voto impresso, como se os votos coletados através da urna eletrônica não fossem. Tanto são que houve auditoria a pedido do PSDB após a eleição de 2014 e nada foi constatado. O próprio candidato derrotado, Aécio Neves, afirma isso hoje.

A afirmação é tão despropositada que é o mesmo que dizer que a movimentação bancária não é auditável por ser 100% eletrônica. Vale lembrar que a família do presidente movimenta grandes somas de dinheiro vivo, como ficou revelado nas investigações sobre o escândalo das rachadinhas. Segundo o Ministério Público, é para fugir da auditoria por parte do poder público.

Voto impresso mais inseguro que o digital

Fernando Neisser, doutor em Direito Penal pela Universidade de São Paulo, advogado especialista em direito eleitoral e um dos fundadores da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep), avaliou à coluna que o voto impresso é mais inseguro que o digital.

"Tem uma chance maior de problemas técnicos com a urna. Aumenta muito o tempo de apuração. Pode funcionar como comprovante para compra de voto. E não há nenhuma demonstração de que traga resultados mais fidedignos do que o voto eletrônico", explica.

Para ele, nosso sistema atual é suficientemente seguro e rápido. "E rapidez é importante, pois dá segurança à população no momento da apuração. O voto impresso apenas atrapalharia algo que já funciona."

Nada impede que um sujeito instruído por uma campanha para fazer bagunça digite na urna, digamos, 13, fotografe o voto sendo impresso e saia gritando: "eu votei no Bolsonaro, meu voto não é esse". Está aberto o espaço para o questionamento dos resultados de uma seção eleitoral de um bairro cujas pesquisas apontam que o candidato petista seja o favorito.

Em um país onde a compra de votos é endêmica e no qual milicianos orientam a votação dos bairros que dominam, é suficiente saber que o eleitor entregou o voto. No voto impresso, o cidadão pode ser obrigado a tirar uma foto da impressão para entregar a quem comprou ou quem o obrigou a votar.

Ou o criminoso pode demandar uma combinação de votos que não faça sentido para a Presidência, Governo e Senado e Câmara dos Deputados junto com o nome do deputado estadual que comprou o voto. Em uma auditoria da urna, fica fácil verificar quais são esses votos e se a "encomenda" foi entregue.

"Voto impresso caminha na contramão da proteção do anonimato"

Os ministros do Supremo Tribunal Federal já consideraram, em 14 de setembro do ano passado, por unanimidade, a impressão dos votos pela urna eletrônica inconstitucional. A minirreforma eleitoral de 2015 havia incluído a determinação, mas a implantação da medida estava suspensa por liminar concedida em 2018 e, por isso, não foi adotada nas eleições gerais daquele ano.

Em fevereiro de 2018, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5889 contra o dispositivo incluído na Lei das Eleições pela chamada Minirreforma Eleitoral (lei 13.165/2015). Para ela, a medida colocava em risco o sigilo do voto e, portanto, vai contra a Constituição Federal.

"A reintrodução do voto impresso como forma de controle do processo eletrônico de votação caminha na contramão da proteção da garantia do anonimato do voto e significa verdadeiro retrocesso", afirma Dodge. "A adoção do processo eletrônico de votação e o seu paulatino aperfeiçoamento constituem conquista do sistema eleitoral brasileiro, orientado pelo fortalecimento da democracia representativa e pela proteção dos direitos políticos, entre os quais se evidencia o direito ao voto secreto."

O ministro Alexandre de Moraes, que garantiu a medida cautelar que suspendeu a efetividade do dispositivo em 2018, afirmou que a legislação eleitoral deve estabelecer mecanismos que impeçam que se coloque "em risco o sigilo da votação, pois eventual possibilidade de conhecimento da vontade do eleitor pode gerar ilícitas pressões em sua liberdade de escolha ou futuras retaliações". E disse que "não é o que se verifica no caso em análise".

O relator do caso, ministro Gilmar Mendes, também votou a favor da inconstitucionalidade da medida. "Não é possível fazer uma mudança tão abrupta no processo eleitoral, colocando em risco a segurança das eleições e gastando recursos de forma irresponsável", disse. Também avaliou que os parlamentares impuseram uma modificação substancial na votação, sem fornecer normas e procedimentos para tanto.

Os ministros Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes, junto com Luís Roberto Barroso, atual presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), conversaram recentemente com lideranças do Congresso Nacional sobre os riscos da proposta de introduzir o voto impresso.

Com isso, a pauta quase foi arquivada no último dia antes do recesso parlamentar, após um grupo de 11 partidos políticos fechar questão contra ela. O que só não ocorreu por conta de manobras de parlamentares bolsonaristas. Isso enfureceu Bolsonaro, que vem xingando Barroso em público desde então.

Com a repercussão negativa de um ministro da Defesa colocando uma faca no pescoço do presidente da Câmara, que também é um dos líderes do centrão, a pauta deve ser enterrada. Ou seja, Braga Netto terá sido o coveiro do voto impresso.

Toda eleição, o TSE convida especialistas e hackers para tentarem encontrar falhas. Os resultados são usados no aprimoramento do sistema, mas nunca foi constatada possibilidade de manipulação de resultados.

A existência de fraudes através de urnas eletrônicas "viciadas" ou hackeadas vem sendo defendida por adeptos de teorias da conspiração e fazem sucesso nas redes de fãs do presidente. Os mesmos grupos de WhatsApp compartilham teorias de que vacinas contra covid-19 contam com chips para rastrear os imunizados via 5G. Nessa tese tresloucada, o plano envolveria cavaleiros templários, os Illuminati e bilionários comunistas.

O objetivo de todo o caos é questionar os resultados em caso de derrota e tentar um golpe de Estado. Mesmo que não consiga, vai derramar sangue, gerar violência e criar instabilidade - situação que ele chama de lar.