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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Terrorismo de Estado sofre derrota com condenação de militares assassinos

Fabio Teixeira/AP
Imagem: Fabio Teixeira/AP

Colunista do UOL

14/10/2021 07h54

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O Tribunal de Justiça Militar condenou, nesta quinta (14), oito militares do Exército pela execução do músico Evaldo Rosa dos Santos e do catador de materiais recicláveis Luciano Macedo. O caso é um exemplo típico do terrorismo cometido pelo Estado brasileiro. Quem puxou o gatilho recebeu penas entre 28 e 31 anos. Mas apesar deste revés, os idealizadores e incentivadores dessa política seguem livres e vão ainda causar muitos danos.

Cabe apelação. Os condenados devem ficar em liberdade até uma decisão final do Superior Tribunal Militar.

Evaldo foi executado diante de sua família após o carro em que estavam ser alvo de mais de 80 tiros, em Guadalupe, Zona Norte do Rio de Janeiro, no dia 7 de abril de 2019. Sua esposa, seu filho de sete anos, uma afilhada, de 13, e seu sogro assistiram à sua morte. Todos iam a um chá de bebê.

Se você deduziu qual a cor da pele de Evaldo, o que serviu como gatilho para a ação, parabéns. Você conhece bem o país em que vive.

Já Luciano foi atingido quando tentava ajudar a família do músico que estava no veículo (e, por sorte, sobreviveu). Ele faleceu 11 dias depois. No julgamento, a defesa dos militares tentou, de forma covarde, culpar alguém que morreu como herói, afirmando que o catador pertencia ao tráfico e era o responsável pela morte de Evaldo. Num país em que o governo federal terceiriza a responsabilidade por mortes em massa, essa justificativa porca ganha espaço.

A política informal de execução de pobres e negros nas periferias não é uma novidade no Rio de Janeiro. Eles têm sido abatidos cotidianamente pelas mãos do tráfico, de milicianos, de policiais e militares. Em abril de 2019, o diferencial era a tempestade perfeita criada por um governador e um presidente da República que elogiavam execuções cometidas por agentes de Estado - o que era recebido como apoio explícito.

Não era a mão de mandatários como, na época, Wilson Witzel e Jair Bolsonaro que seguraram os fuzis. Mas foi a sobreposição dos discursos de ambos, promovendo, premiando e justificando execuções pelas mãos do poder público, e as políticas encabeçadas por eles, que ajudaram a tornar a execução de pobres e pretos algo banal sob a justificativa do bem maior.

Nesse ponto de vista, mortes como a de Evaldo e Luciano foram encaradas como "danos colaterais" aceitáveis no caminho de um Estado seguro. O problema é que um Estado que mata indiscriminadamente não é seguro, mas autoritário e ditatorial. Nele, qualquer um com a cor de pele e a classe social "erradas" podem se tornar suas vítimas. E ainda terem que pedir desculpas depois de mortos, como queria a defesa dos executores.

Esses "danos" se repetem aos milhares, todos os anos. Na última década, uma pessoa negra teve ao menos duas vezes mais riscos de ser assassinada, de acordo com o Atlas da Violência 2021, lançado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em agosto.

Em 2019, ano do assassinato de Evaldo e Luciano, essa diferença foi a segunda maior registrada no período: 2,6 vezes. Os negros foram 75,7% das vítimas de homicídios no Brasil e eram 56,8% da população.

Em julho de 2017, reportagem do UOL apontava que nove entre cada dez pessoas mortas pela polícia no Estado do Rio de Janeiro eram negras. O dado foi obtido através da Lei de Acesso à Informação. Organizadas com base em boletins de ocorrência da Polícia Civil, as informações mostraram que, ao menos, 1227 pessoas foram mortas pela força policial entre janeiro de 2016 e março de 2017. Metade delas tinham até 29 anos. A maioria na periferia.

Evaldo teria recebido 80 tiros no Leblon se fosse branco e rico?

Pode ser espantoso para quem vive em um bairro nobre, protegido por câmeras, muros altos e um batalhão de seguranças que o principal alvo da violência no Brasil não sejam homens e mulheres brancos e ricos. Mas os dados não trazem novidade para quem sente na pele um genocídio em curso.

Não é da natureza da maioria das pessoas que decide vestir farda (por opção ou falta dela) tornar-se violenta. Elas aprendem a agir assim. No cotidiano da instituição a que pertencem, na formação profissional que tiveram, na exploração diária como trabalhadores e na internalização de sua principal missão: manter a ordem (e o status quo) a qualquer preço. Tudo com a anuência de uma parte da população, que não se indigna diante da morte de negros e pobres e periféricos. Indigna-se com quem diz que racismo existe.

Nas redes sociais, essas pessoas são mortas uma segunda vez através de postagens preconceituosas e violentas que dizem que "se levaram bala é porque estavam em lugar que gente honesta não frequenta". Não foi diferente com Evaldo e Luciano nos dias que se seguiram aos seus assassinatos por agentes do Estado.

Por exemplo: "Se você escolher falar merda e defender bandido é escolha sua. Seu merda! Se for errado paga com a vida! Mexeu com o exército, assinou sua sentença! Sua família vai pagar! Aguarde as cartas. " Foi assim que um perfil nas redes sociais ameaçou o jornalista que havia feito reportagem sobre a execução para o programa "Fantástico", da TV Globo.

Não há ordens diretas para metralhar negros e pobres da periferia dados pelo comando do poder público. Mas nem precisaria. Primeiro, as forças de segurança em grandes metrópoles, como o Rio, são treinadas para, primeiro, garantir a qualidade de vida e o patrimônio de quem vive na parte "cartão postal" das cidades, atuando na "contenção" dos mais pobres. Segundo, com um então governador e um presidente que apoiavam a letalidade policial como política de combate à violência, a percepção da impunidade deixou tudo mais simples.

Percepção que o julgamento desta quinta ajudou a reduzir. E abre a possibilidade para discutirmos se queremos as Forças Armadas, que são treinadas para a guerra, atuando em contato direto com a população, produzindo mais Evaldos e Lucianos, ou agindo realmente pelo interesse popular.

A questão é que a diferença nas taxas de homicídios de pobres e negros já seria razão mais do que suficiente para ocuparmos as ruas das grandes cidades em protesto. Infelizmente, essas mortes raramente valem o arranhão deixado no teflon de uma panela batida. E apesar de alguma indignação nas classes médias urbanas, a periferia sempre esteve por conta própria. A mudança, portanto, sairá de sua organização e mobilização.

O Brasil segue adotando o terrorismo de Estado contra sua própria população. Dessa forma, vamos nos afastando das mudanças estruturais para garantir paz - que incluem um Estado que pense em qualidade de vida para todos; forças de segurança treinadas para agir com inteligência e não matar como reação básica; e a oferta de um horizonte com opções para os jovens pobres que saem em busca de um lugar no mundo.

Policiais e militares não atiram em famílias de brancos ricos impunemente no Leblon ou nos Jardins, apesar de ser nos bairros ricos das grandes cidades a morada de grandes criminosos, tanto do tráfico e da milícia quanto do poder econômico. Por que isso ocorre com negros pobres nos Extremos da Zona Norte e Oeste do Rio ou nos Extremos da Zona Leste e Sul de São Paulo?

Se você já tinha deduzido que é porque a vida, nesses locais, vale muito menos, parabéns de novo. Você realmente conhece o seu país.