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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quem votou em Bolsonaro por causa de Guedes precisa de uma bela autocrítica

Marcelo Camargo/Agência Brasil
Imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Colunista do UOL

21/10/2021 15h39

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É impagável presenciar Paulo Guedes passando por cima do discurso de austeridade fiscal e da regra do teto de gastos que sempre defendeu para tentar aumentar a popularidade de Jair Bolsonaro. Ver o ministro da Economia falando em "licença para gastar R$ 30 bilhões fora do teto" para dar ao chefe o poder de distribuir um vale-reeleição é uma cena de 9,55 milhões de dólares em paraíso fiscal.

Mudar a fórmula do cálculo do teto e bloquear o pagamento de precatórios (boa parte é de dívidas com aposentados) é marmotagem. Sejamos honestos: apesar da queda na Bolsa de Valores e da alta do dólar, sua santidade o mercado passa pano e precifica porque é o Guedes, não é o Guido Mantega. Se fosse o petista, teríamos uma multidão dizendo que isso é uma pedalada maior que a Volta da França e pedindo derramamento de sangue em sacrifício.

Não me entendam mal, por favor. Como estou cansado de dizer aqui, sou a favor da revisão do teto dos gastos, ainda mais se for para transferir grana para os muitos pobres em meio a essa lama que Jair nos meteu. Mas, daí, teria que surgir de uma discussão fundamentada e valer para a geral e não um cambalacho para ajudar o presidente no seu longo e esburacado calvário em direção à reeleição.

Ainda lembro, como se fosse ontem, um rosário de gente bonita e crescida no leite de pera dizendo que Guedes iria domar Bolsonaro. E que, por isso, não estava votando em Jair, mas em Paulo. É o típico exemplo do Manual do Autoengano.

O então deputado federal, Fidalgo do Baixo Clero, Zé Ninguém do Centrão, Lorde das Rachadinhas, Agrupador de Milícias, o Primeiro de seu Nome, sempre deixou claro quem era, o que pensava e que faria de tudo para alcançar e manter o poder. Naquele momento, estava claro que o mais provável era que Jair libertasse o pequeno Bolsonaro que existe dentro de Guedes do que Guedes colocar Bolsonaro no cabresto.

E isso veio a acontecer. Paulo 'Caco Antibes' Guedes demonstrou mais de uma vez que é um camarada destacado da ala radical do governo, ao contrário do que pregam os Faria Limers. Ele não atua para impedir que crianças estupradas possam fazer o aborto previsto em lei, como alguns colegas, mas a insensibilidade com a situação econômica dos mais vulneráveis sempre foi gigante.

Lembram quando ele perguntou "qual o problema agora que a energia vai ficar um pouco mais cara porque choveu menos"? Ou quando desaprovou empregadas domésticas viajando à Disney, criticou o aumento na expectativa de vida da população, afirmou que a classe média exagera no tamanho do prato e que as sobras poderiam alimentar os mais pobres, reclamou que o governo ampliou demais o acesso ao Fies, bancando universitário que "não sabiam ler nem escrever", insinuou um novo AI-5 diante de protestos de rua contra o governo, rotulou servidores públicos de parasitas, repreendeu pobres por não pouparem e os associou à destruição do meio ambiente?

Não é à toa que Bolsonaro gosta de verdade do ministro da Economia, o que evitou sua demissão mais de uma vez, e a metáfora do casamento entre eles é real. O presidente fala que seu governo vai gerar emprego através de programas que trazem "Verde e Amarelo" no nome. Dai, Guedes propõe que proteções e garantias desses trabalhadores sejam limadas em troca desses empregos. Olha só, que perfeito. O ministro e Bolsonaro são um só animal político, com duas cabeças.

Uma das características dos ministros da fictícia "ala técnica do governo Bolsonaro" é que eles têm demonstrado que amam mais os cargos que ocupam do que suas supostas convicções técnicas. E já demonstraram que fazem de tudo para garantir o carro oficial, o café sempre quente e não precisar girar uma maçaneta sequer.

Guedes é um exemplo de quem baixou a cabeça não só para Jair mas para o centrão, que hoje é o chefe do seu chefe. Temos também Marcelo "Dedo do Meio" Queiroga, que em nome da manutenção de um cargo que não teria em um governo democrático racional, apoia os crimes do patrão no combate à pandemia de covid-19, passando pano para cloroquina, criticando o uso de máscaras, sabotando vacinação de adolescentes, ou seja, colocando a vida dos brasileiros em risco.

Cobra-se com frequência autocrítica da esquerda. E acho que ela tem que se explicar por muita coisa. Mais do que a questão da corrupção, ela precisa contar a razão de não ter demarcado terras indígenas o suficiente, não ter realizado as reformas agrária e urbana de forma ampla e real, não ter garantido recursos para o salto do ensino básico, não ter reduzido as emissões de carbono na velocidade que precisamos, não ter taxado super-rico (atenção, não é com você, que comprou o Renegade parcelado, ok?). E antes que digam que a correlação de forças não deixou, uma dica: ela nunca deixa.

Mas uma autocrítica da direita liberal, que votou em Bolsonaro achando que ele seria o poodle de Paulo Guedes faz-se necessária e urgente.

Se Guedes não rodar pelas mãos de Jair, que pode colocar alguém mais disposto ainda a cumprir ordens, a galera do autoengano vai ter coragem de dizer no ano que vem de novo que vota no capitão porque Paulo o segura? Ou vai assumir que vota porque, na verdade, queria mesmo é uma Damares Alves, um Ernesto Araújo, um Ricardo Salles...