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Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Justiça violenta mais uma vez criança estuprada para que desista de aborto

A juíza Joana Ribeiro Zimmer, da Justiça estadual de Santa Catarina - Solon Soares/Assembleia Legislativa de Santa Catarina
A juíza Joana Ribeiro Zimmer, da Justiça estadual de Santa Catarina Imagem: Solon Soares/Assembleia Legislativa de Santa Catarina

Colunista do UOL

20/06/2022 17h53

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O avanço do ultraconservadorismo violento entre as instituições públicas está fazendo com que o Estado brasileiro se especialize na tortura de crianças estupradas. E provando que pode ser muito competente nisso.

Uma juíza e uma promotora de Santa Catarina pressionaram uma menina de 11 anos, que ficou grávida ao ser violentada aos dez, a manter a gestação contra a sua vontade.

Isso acontece dois anos após representantes do governo federal terem sido enviados ao Espírito Santo para tentar impedir uma menina de dez anos, que ficou grávida após ser constantemente estuprada pelo próprio tio desde os seis, decidir por recorrer ao direito ao aborto, previsto em lei.

De acordo com reportagem de Paula Guimarães, Bruna de Lara e Tatiana Dias, do Intercept Brasil em parceria com o portal Catarinas, após o hospital universitário da Universidade Federal de Santa Catarina se recusar a fazer o procedimento por conta da gestação estar na 22ª semana (apesar de não haver impedimento legal baseado nisso), a criança e a mãe procuraram a Justiça.

Lá ouviram da juíza Joana Zimmer uma pergunta que nenhuma pessoa grávida ao ser estuprada deveria ouvir, principalmente uma criança: "você suportaria ficar mais um pouquinho?"

A promotora Mirela Albertron fez coro e disse: "a gente mantinha mais uma ou duas semanas apenas a tua barriga para ele ter a chance de sobreviver mais". E completou: "Em vez de deixar ele morrer, porque já é um bebê, já é uma criança, em vez de a gente tirar da tua barriga e ver ele morrendo e agonizando".

Depois de deixar claro à magistrada que não queria ter o bebê e que gostaria de voltar a estudar como antes, a criança, a poucos dias de completar 11 anos, teve que reviver a violência que sofreu, dessa vez pela boca de quem deveria protege-la:

Juíza: Você tem algum pedido especial de aniversário? Se tiver, é só pedir. Quer escolher o nome do bebê?
Criança: Não
Juíza: Você acha que o pai [sim, a juíza chamou o estuprador de pai] do bebê concordaria pra entrega para adoção?
Criança: Não sei.

A juíza ainda pressionou a mãe da menina para que esperasse o bebê nascer para que fosse dado à adoção, apesar do risco de vida para a sua filha.

O ultraconservadorismo violento aprende com seus "erros". No caso de 2020, apesar de a Vara da Infância e da Juventude ter autorizado que a menina estuprada durante anos pelo tio, no Espírito Santo, interrompesse a gravidez, ela não conseguir realizar o aborto no estado. Acabou sendo atendida em Pernambuco.

Claro que radicais cercaram o hospital em Recife, ameaçando-a de morte, bem como os médicos e profissionais de saúde envolvidos. Nas redes sociais, justificavam-se dizendo que eles eram todos homicidas. Pior: disseram que ela tinha aceitado o sexo com o próprio tio e, agora, não queria assumir a responsabilidade. Mesmo com a chiadeira burra, o procedimento foi, por fim, realizado.

No caso de Santa Catarina, a juíza decidiu garantir que a criança não pudesse fazer isso. A promotoria havia pedido que ela fosse enviada a um abrigo para protege-la do agressor, mas a magistrada adicionou que isso também serviria para evitar que "efetue algum procedimento para operar a morte do bebê".

Ou seja, manteve-a presa para garantir que não conseguisse outra forma de abortar, como aconteceu com a menina de São Mateus (ES).

No Brasil, o direito ao aborto é previsto em casos de estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia. A menina preenchia dois dos três requisitos, mesmo assim esse direito foi negado a ela.

Infelizmente, isso não é exceção. Nos casos autorizados por lei, brasileiras que recorrem à interrupção da gravidez enfrentam os mais diversos tipos de violência. Há médicos que recusam atende-las em processo de abortamento espontâneo. Servidores públicos chamam a polícia alegando que elas cometeram crime. Isso sem falar do calvário de ter que viajar muitos quilômetros para encontrar um serviço público que possa acolhê-las, pois há médicos e hospitais que se negam a cumprir a lei, como em Santa Catarina.

Enquanto isso, as bancadas do fundamentalismo religioso no Congresso Nacional, em Assembleias Estaduais e Distrital e nas Câmaras Municipais têm atuado em nome de projetos que são retrocessos à dignidade. Como os que buscam criminalizar a orientação sobre o aborto legal, com penas maiores se quem ajudar for agente de saúde. Ou as campanhas para reduzir a previsão de aborto legal.

A proporção que toma um caso como o das duas meninas, de Santa Catarina e do Espírito Santo, muito por conta de líderes políticos e religiosos que acham que o corpo de meninas e mulheres é um campo de batalha para a sua cruzada particular, é a prova que estamos ainda mais próximos de uma distopia apocalíptica do que de uma sociedade de direitos no Brasil. Mas que nunca foi tão importante resistir.

O Estado brasileiro não apenas é incapaz de proteger suas crianças como também atua diligentemente para que elas sejam novamente violentadas e violentadas se procurarem seu amparo.