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Leonardo Sakamoto

REPORTAGEM

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Fome se torna mais frequente nas denúncias de escravidão contemporânea

Alojamento onde trabalhador resgatado em Formosa (GO) vivia com a família, com pouca comida - AFT
Alojamento onde trabalhador resgatado em Formosa (GO) vivia com a família, com pouca comida Imagem: AFT

Colunista do UOL

14/07/2022 10h52

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A fome se tornou mais frequente nas denúncias de escravidão contemporânea que chegam aos órgãos públicos envolvidos no combate a esse crime. Apesar de a falta de alimentos não ser novidade entre as condições a que estão submetidos os trabalhadores, a situação se agravou nos últimos tempos.

"Temos constatado que tem sido mais comum casos em que trabalhadores, principalmente rurais, decidem fugir por fome", afirmou o auditor fiscal Maurício Krepsky, chefe da Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) do Ministério do Trabalho e Previdência. Ainda não há dados consolidados sobre o aumento, que se traduz nos registros das fiscalizações.

Por exemplo, em uma operação que está em curso no Rio Grande do Sul, pelo menos 15 trabalhadores foram resgatados pela Inspeção do Trabalho, dos quais dois com menos de 18 anos - todos passando fome.

Em junho, 26 trabalhadores foram resgatados em duas fazendas de cultivo de grãos em Mirador (MA). De acordo com a fiscalização, dormiam em barracos de lona, não tinham acesso a banheiros e água potável e passavam fome. Tanto que alguns fugiram por conta da falta de comida e pelas condições de trabalho.

Em agosto do ano passado, um homem foi resgatado do trabalho análogo ao de escravo em uma fazenda de gado durante uma operação de fiscalização, em Formosa (GO), após mais de oito anos de serviço. Ele vivia com sua esposa e cinco filhos dormindo entre escorpiões e cobras, sem água e luz, sob a poeira da mineração de calcário que ocorria perto de seu alojamento. Passavam fome.

Uma das hipóteses é de que, com o forte aumento nos preços dos alimentos, o pouco que alguns empregadores forneciam aos seus trabalhadores diminuiu ainda mais, levando à fome.

A quantidade de brasileiros que passam fome foi de 19,1 milhões para 33,1 milhões em menos de dois anos. Isso significou um aumento de 9,1% para 15,5% da população. Destes, 15,9 milhões afirmam que tiveram que adotar estratégias consideradas inaceitáveis ou vergonhosas para não morrer. Como disputar restos de ossos ou pegar comida no lixo. Ou aceitar qualquer tipo de serviço.

O levantamento que investiga a segurança alimentar no contexto da pandemia foi realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) e tem margem de erro de 0,9 ponto.

Insegurança alimentar torna famílias vulneráveis ao trabalho escravo

"A pessoa em situação de insegurança alimentar, que tem aumentado nos últimos anos, fica mais vulnerável, sujeita a aceitar propostas de emprego enganosas. Podem até trabalhar em troca de moradia e alimentação", afirma o procurador Italvar Medina, da Coordenação Nacional de Combate ao Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho.

De acordo com ele, a fome pode ser uma característica da escravidão quando não são fornecidas mínimas condições de vida aos trabalhadores, incluindo alimentação adequada. E, por vezes os alimentos são vendidos por preços superfaturados para que fiquem endividados. "Há até casos em que não é fornecida nenhuma alimentação e os trabalhadores precisam literalmente caçar a sua comida", afirma.

Três indígenas Guarani-Kaiowá de 23, 20 e 14 anos foram resgatados em uma área de produção de eucalipto em Ponta Porã (MS), no dia 19 de abril, quando era celebrado o Dia do Indígena. Contando com pouca comida, eles caçavam passarinhos para matar a fome quando foram encontrados.

Há também os casos em que a alimentação é fornecida pelo empregador, mas não são disponibilizados locais adequados para que sejam guardados e preservados. Dessa forma, é comum que trabalhadores acabem comendo produtos estragados.

De acordo com o frei Xavier Plassat, da coordenação nacional da campanha de combate ao trabalho escravo da Comissão Pastoral da Terra, nos últimos casos de escravidão registrados na região Nordeste, os trabalhadores estavam expostos a condições de alimentação as mais precárias possíveis.

Ele ressalta que a fome não é novidade nas denúncias, mas, no atual contexto, "o que já era ruim ficou ainda pior".

Isso se traduz em histórias tristes. Duas crianças de nove e dez anos e uma adolescente de 13 foram encontradas, junto com seus pais, em condições análogas às de escravo em uma fazenda de café e eucalipto em Minas Novas (MG), região do Vale do Jequitinhonha, no ano passado.

No momento da fiscalização, foi constatado um pouco de arroz, de macarrão, sal e feijão e açúcar misturado com pó de café.

Questionado sobre a razão dessa mistura, o trabalhador explicou que era para evitar que as crianças comessem o açúcar. Elas iam atrás do produto porque estavam com fome.

Trabalho escravo no Brasil hoje

Desde a década de 1940, o Código Penal Brasileiro prevê a punição a esse crime. A essas formas dá-se o nome de trabalho escravo contemporâneo, escravidão contemporânea, condições análogas às de escravo.

De acordo com o artigo 149 do Código Penal, quatro elementos podem definir escravidão contemporânea por aqui: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas, muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar o trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

O grupo especial móvel de fiscalização, que completou 27 anos em maio, é a base no combate a esse crime no país.

Os mais de 58 mil trabalhadores resgatados estavam em fazendas de gado, soja, algodão, café, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na derrubada de mata nativa, na produção de carvão para a siderurgia, na extração de caulim e de minérios, na construção civil, em oficinas de costura, em bordéis, entre outras atividades, como o trabalho doméstico.