Topo

Leonardo Sakamoto

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

STF acaba com cela especial para quem tem diploma, monumento à desigualdade

Cela superlotada no CDP (Centro de Detenção Provisória) de São Vicente, na Baixada Santista - Divulgação/Defensoria Pública
Cela superlotada no CDP (Centro de Detenção Provisória) de São Vicente, na Baixada Santista Imagem: Divulgação/Defensoria Pública

Colunista do UOL

30/03/2023 16h58

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

A maioria dos ministros do Supremo Tribuna Federal votou pelo fim da prisão especial provisória (vulgo cela especial) para quem tem diploma de curso superior. Com isso, o Brasil deve demolir um dos seus mais abjetos monumentos à desigualdade social - isso se nenhum ministro pedir vistas do processo.

Relator da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 334, ajuizada no Supremo Tribunal Federal pela Procuradoria-Geral da República, em 2015, o ministro Alexandre de Moraes votou pela inconstitucionalidade da cela especial. Até agora, acompanham o relator Alexandre de Moraes, os ministros Cármen Lúcia, Dias Toffoli, Edson Fachin, Roberto Barroso e a presidente da corte, Rosa Weber. O julgamento virtual está programado para terminar nesta sexta (31).

Hoje, se duas pessoas cometem o mesmo crime, mas uma delas estudou mais, esta poderá ficar em uma cela especial, separada dos demais presos até condenação (ou absolvição) em definitivo. Isso não tem o mínimo cabimento.

O artigo 5° da Constituição Federal diz que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza''. Mas, na prática, a legislação brasileira confere o privilégio de não ficar em cárcere comum até o trânsito em julgado de uma decisão penal condenatória para alguns grupos.

Em alguns casos, como os delegados de polícia, por exemplo, isso faz sentido por motivo de vingança. Em outros, como os detentores de diploma de curso superior, não.

Quem teve acesso à educação formal desfruta de privilégios sobre quem foi obrigado, em determinado momento, a escolher entre estudar e trabalhar. Ou que, por vontade própria, simplesmente optou por não fazer uma faculdade.

Só o pensamento limitado é capaz de considerar alguém "superior" por ter um bacharelado ou uma licenciatura. Posso ter mais conhecimento técnico universitário em determinada área, mas isso não faz de mim uma pessoa melhor ou com mais caráter do que alguém que aprendeu na prática, como um trabalhador rural iletrado.

O Senado Federal havia derrubado essa aberração presente no inciso VII, do artigo 295, do Código de Processo Penal, mas a Câmara dos Deputados, claro, barrou a mudança.

Rodrigo Janot, então procurador geral da República, ajuizou no STF a ADPF contra o inciso. Segundo ele, o item "viola a conformação constitucional e os objetivos fundamentais da República, o princípio da dignidade humana e o da isonomia". Segundo sua argumentação, a separação não deveria ocorrer por conta do nível educacional, mas da natureza do delito, da idade e do sexo.

Considerando que, antes do julgamento e de uma condenação, há a presunção da inocência, seria importante que o regime desses presos fosse diferenciado. Mas isso deveria valer para todo mundo - do analfabeto ao que tem pós-doutorado. Assim, não seria a concessão de um privilégio, mas a garantia de um direito. Aliás, o ideal é que não mandássemos para a cadeia os que não estão condenados se apresentam risco à sociedade ou ao inquérito.

Esse debate abre outro. O atual Código de Processo Penal passou a vigorar em 1942, quando poucos tinham acesso ao ensino superior - situação que está mudando no Brasil.

Antes, o número de faculdades particulares era pequeno e as suas mensalidades altas, ao passo que os vestibulares das universidades públicas eram duros o bastante para quem estudou a vida inteira em escola pública e não tinha dinheiro para pagar um cursinho.

Não que o acesso tenha, de fato, se universalizado, mas ao mesmo tempo que aumentou o número de vagas em públicas federais (ainda que continuem insuficientes, diga-se de passagem), explodiu a quantidade de faculdades privadas, com mensalidades acessíveis ou possibilitadas por Fies e Prouni - e qualidade, não raro, duvidosa. O fato é que muita gente passou a obter diplomas.

Quando muitos têm uma calça exclusiva, ela deixa de ser exclusiva e passa ser popular. Diante disso, qual será o próximo passo? A construção de mais celas especiais ou a criação de outros critérios para garantir que nós, da elite, continuemos separados dos menos afortunados, agora com diploma?

Por enquanto o andar de cima não perdeu nada, por mais que a classe média alta reclame que o povaréu tupiniquim ascendeu e está transformando aeroportos em rodoviárias, ou seja, roubando aquilo que viam como privilégio de classe.

Continuará, por muito tempo, valendo a máxima: "tenha um bom advogado". Porque quem pode usa todos os recursos possíveis e tem acesso ao que nem sempre o andar de baixo consegue. As Defensorias Públicas são mais do que competentes para isso, mas contam com estrutura insuficiente à sua disposição.

Se o STF ou o Congresso mudarem essa situação, a cela especial acabará quando o acesso ao ensino superior se tornar tão comum quanto a alfabetização. Mas, daí, não terá sido mérito nosso como sociedade essa mudança e sim do tempo, que - inexoravelmente - transforma tudo.

Agora, com o julgamento no STF, podemos encurtar esse tempo tornando o Brasil um pouquinho mais justo e menos desigual.

Para além disso, vai faltar garantir que pobres não amarguem anos de prisão provisória, à espera de julgamentos que podem inocentá-los.

Que negros não sejam mandados à prisão por crimes que não cometeram porque foram equivocadamente confundidos por cor de sua pele.

E que todas as pessoas tenham o mesmo tratamento diante da Justiça, independentemente de quanto têm na conta bancária.