Leonardo Sakamoto

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Opinião

Calor ficará pior se agropecuária não mudar e consumismo continuar sagrado

O "Relógio do Juízo Final", um medidor simbólico mantido pelo Boletim dos Cientistas Atômicos, nos Estados Unidos, criado por Albert Einstein e seus colegas em 1947, mostra o quão perto estamos de destruir nossa civilização por tecnologias que criamos. Inicialmente, ele retratava o risco de armas nucleares, mas, recentemente, passou também a considerar mudanças climáticas.

Quanto mais próximo da meia-noite, mais perto estamos do fim. Na pior situação do relógio durante a Guerra Fria, chegamos a 2 minutos da meia-noite (em 1953, com sucessivos testes nucleares do EUA e da União Soviética) e, na melhor, a 17 minutos (com a redução do arsenal nuclear ao fim do conflito entre as duas superpotências).

Desde então, o reloginho foi se aproximando do fim dos tempos e, neste ano, foi ajustado para 90 segundos para a meia-noite. Entre os motivos principais, ameaças trazidas pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia (olha que nem deu tempo ainda de considerar o conflito entre Israel e o Hamas) e, claro, o aquecimento do planeta, consequência do despejo de carbono na atmosfera.

"Os eventos extremos não só continuaram a assolar diversas partes do globo, como também foram mais evidentemente atribuíveis às alterações climáticas", diz a declaração dos cientistas que cuidam do "Relógio do Juízo Final".

"Os países da África Ocidental sofreram inundações que estiveram entre as mais letais das suas histórias, devido a um evento de precipitação que foi avaliado como sendo 80 vezes mais provável devido às alterações climáticas. As temperaturas extremas na Europa Central, na América do Norte, na China e noutras regiões do Hemisfério Norte, conduziram à escassez de água e a condições de seca do solo que, por sua vez, levaram a colheitas fracas, minando ainda mais a segurança alimentar."

Novamente, isso ainda não considera a pior seca registrada na floresta amazônica, tampouco as inundações recordes no Sul do Brasil e as ondas de calor no Hemisfério Sul, com o El Niño bombado pelo novo normal do clima.

O Boletim dos Cientistas Atômicos lembra que os países não conseguiram adotar uma decisão formal para eliminar gradualmente os combustíveis fósseis. Pior: não fizeram essencialmente nada para garantir que os compromissos anteriores a fim de alcançar zero emissões líquidas de gases com efeito de estufa fossem cumpridos.

De um lado, o Brasil contribui para fazer sua lição de casa, com a redução no desmatamento da Amazônia - o governo Lula conseguiu baixar em 22,3% o desmatamento na Amazônia em um ano, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Mas o uso do fogo, protagonista da gestão Bolsonaro, não foi freado a contento. E, com isso, cidades como Manaus estão sob neblina espessa.

Do outro, setores do Estado e da sociedade justificam que o Brasil tem o direito de explorar petróleo na costa do Amapá e pressiona o Ibama e a ministra Marina Silva para liberar as autorizações de prospecção mesmo sem um plano decente de salvaguardas. Tipo, precisamos frear a velocidade da mudança do clima, mas deixemos para começar amanhã.

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Nossa sociedade não evoluiu pensando em um plano B e agora que ajustamos o termostato do planeta para a posição "Gratinar os Consumistas Lentamente" ficamos nos debatendo, com discursos mequetrefes, de que a economia não pode pagar pelas necessárias mudanças no modelo de desenvolvimento pela qual passa a solução.

Não é à toa que uma das mais estranhas e, ao mesmo tempo, brilhantes alianças táticas no parlamento brasileiro seja entre a bancada do fundamentalismo religioso e a bancada ruralista. De um lado, os fundamentalistas religiosos ajudam a garantir a manutenção de um desenvolvimento a qualquer preço, passando por cima do meio ambiente, como se não houvesse amanhã. Do outro, os fazendeiros contribuem para que os direitos sejam rasgados diante de uma visão distorcida de religião, garantindo que não faça muito sentido existir um amanhã. Um faz o jogo do outro.

O pacto é perfeito. Pois só restará lamentar. Ou rezar. Até porque, do ponto de vista do meio ambiente ou da dignidade humana, antecipam todos o Dia do Juízo Final.

O impacto da agropecuária e do extrativismo em nossa conta de emissões de carbono é central, principalmente ao considerarmos que desmatamento e queimadas na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal ocorrem para dar lugar a novas áreas de produção. Mudar o modelo de desenvolvimento inclui também alterar o padrão de consumo, uma vez que nós do Centro-Sul Maravilha devoramos esses biomas em nome do nosso conforto.

Mas como combater a zorra fundiária, mãe da destruição ambiental, com a tremenda força política de um naco anacrônico do agronegócio? E como reduzir o impacto do consumismo burro se a solução abraçada para o crescimento econômico por sucessivos governos continua sendo o de estimular a compra de veículos a combustão e quinquilharias de plástico?

Dizem que é quando um povo caminha à beira do abismo que consegue mudar o próprio futuro. Pois bem, não estamos mais observando o penhasco, estamos em queda livre, como pode ser visto pela atual onda de calor, que vai se repetir com frequência e piorar. Resta saber se teremos coragem de puxar a cordinha do paraquedas.

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Em tempo: não acreditem em quem diz que as mudanças climáticas são democráticas dentro de um mesmo país. Ou seja, os pobres se fodem, os ricos sempre dão um jeito.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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