Cessar-fogo pausa o extermínio em Gaza, mas genocídio segue à espreita

Após o cessar-fogo entrar em vigor, neste domingo (19), com atraso de algumas horas (o que custou a vida de uma pessoa em Rafah, seis em Khan Younis, nove na cidade de Gaza e três no norte do território, segundo a Defesa Civil), palestinos que foram deslocados à força estão juntando seus poucos pertences e tentando voltar para casa, apontam colegas jornalistas em Gaza. A maioria, contudo, não sabe se a casa ou mesmo seu bairro ainda estão lá.
Outros voltam na esperança de encontrar parentes - um dos principais dramas dos últimos 470 dias de conflito foram famílias separadas por conta dos bloqueios israelenses ou pela impossibilidade de saírem atrás de refúgio devido à situação de saúde.
Palestinos miram a região do campo de refugiados de Jabalia, ao norte, por exemplo, uma das áreas mais castigadas. Mas também setores ao Sul próximo a Rafah.
No início da invasão, Israel mandou os moradores deixarem o norte porque estariam seguros, mas depois começou a bombardear o sul. Uma de minhas fontes, uma trabalhadora que atua na área de saúde em Gaza, obedeceu as ordens do Exército e tirou os filhos do norte, mas foi vítima de bombardeios ao chegar ao sul.
Nem toda a Gaza estará aberta aos palestinos com o cessar-fogo. Há zonas de exclusão para a população, nas quais a presença das Forças de Defesa de Israel vão se manter. Isso nos lembra que não estamos vendo um armistício, o fim do conflito, mas apenas uma trégua longamente negociada e frágil. E que não resvala na demanda palestina por um Estado próprio e, de fato, soberano.
Para que ela deságue num período de paz para que a população possa reconstruir um país transformado em escombros por bombardeios e tanques, mas também pelo bloqueio de comida, água, remédios, eletricidade, combustíveis, tanto o governo Benjamin Netanyahu quanto o Hamas não podem descumprir o acordo. E há radicais entre os radicais, de ambos os lados, que torcem para que o circo volte a pegar fogo.
A mudança no balanço de poder no Oriente Médio, com a destruição da cadeia de comando do Hezbollah, no Líbano, a queda do governo Assad, na Síria, e o enfraquecimento do Irã, contribuíram com o avanço das negociações. A pressão do enviado de Donald Trump também foi fundamental. O novo presidente não queria assumir, nesta segunda (20), com mais esse problema nas mãos e, agora, tem uma conquista para chamar de sua.
Por mais que o governo Joe Biden aponte a trégua como uma vitória também de sua diplomacia, ele foi corresponsável por alongar o conflito, ao garantir apoio quase que incondicional ao governo Netanyahu nas Nações Unidas, vetando tentativas de uma resolução para interromper o conflito no Conselho de Segurança. Além de enviar grandes quantidades de armamentos, que foram usados para matar palestinos.
O mais irônico é que, ao final, a vice-presidente Kamala Harris perdeu o apoio de uma parcela considerável dos eleitores jovens, horrorizados com o genocídio em Gaza, das comunidades árabe e islâmica nos EUA e não garantiu necessariamente o suporte dos judeus, muitos dos quais votaram em Trump.
Em 7 de outubro de 2023, o ataque terrorista do Hamas matou 1.139 pessoas em Israel, segundo dados do governo Netanyahu. Além de mais de 200 foram feitas reféns, que começarão a ser trocados por prisioneiros palestinos no cessar-fogo. A reação do governo de Israel foi no sentido de um genocídio, matando 46,7 mil pessoas (dos quais, mais de 18 mil crianças) e ferindo outras 110,7 mil desde então, segundo dados do Ministério da Saúde de Gaza controlado pelo Hamas.
É como se uma a cada 50 pessoas do território tivesse sido morta. Devido às evidências de crimes de guerra, o Tribunal Penal Internacional emitiu um mandado de prisão contra o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, o ex-ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, e um alto funcionário do Hamas em novembro.
Netanyahu não teme a prisão por ordem do TPI, mas aquela decidida pela Justiça de Israel. Ele pode ir preso ao deixar o governo devido às denúncias de corrupção, os ataques à Suprema Corte e sua incompetência em prever os ataques do Hamas. Mantendo a guerra, ele teve o suporte da ala ultraconservadora do parlamento, que o garantiu no poder. Como consequência disso, cenas de horror foram produzidas.
Milhares de israelenses, principalmente famílias de reféns, protestaram por meses contra ele por estender o conflito e não conseguir traze-los de volta. Foram reprimidos com violência na "maior democracia do Oriente Médio".
Como já disse aqui, o cessar-fogo é mais do que bem-vindo e necessário, é o alívio diante de um genocídio. Além da troca de reféns por prisioneiros e do fim de ataques de parte a parte, ele também prevê a abertura de corredores humanitários e a retirada das Forças de Defesa de Israel de determinadas áreas. Mas qualquer falha de um das partes colocará tudo a perder, e Netanyahu já deixou isso claro.
Agora, com o cessar-fogo, o primeiro-ministro de Israel vê a defecção da ultradireita religiosa que quer a continuidade da guerra. Sob a justificativa de aniquilar o Hamas querem, na verdade, colocar em prática planos de conquista territorial de Gaza, a expulsão de palestinos ao Egito e a implementação de assentamentos judeus.
O genocídio ainda está na mesa. Se ele foi pausado ou interrompido é o que tempo vai dizer.