Leonardo Sakamoto

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Opinião

Salário mínimo de pobre é vilão, mas supersalário de juiz é sagrado

Dados do CNJ mostram que 41 magistrados receberam mais de R$ 500 mil em gratificações, abonos e afins, além dos salários e indenizações, em dezembro de 2024. Enquanto isso, o pacote de ajuste fiscal encaminhado pelo governo Lula e alterado e aprovado pelo Congresso atinge principalmente os que dependem do salário mínimo, do abono e do BPC. Até foi aprovada uma limitação de supersalários, mas enfraquecida e sem efeito por enquanto. Isso mostra que o país continua sendo carregado pelo sacrifício dos mais vulneráveis, poupando os mais ricos.

Das mudanças que afetam a qualidade de vida do andar de baixo, as que trarão maior impacto são a redução do universo que tem direito ao abono, que vai gradativamente passar dos que ganham dois para os que recebem 1,5 salário mínimo por mês, e a trava que reduz o ritmo de aumento do salário mínimo — afetando trabalhadores da ativa, pensionistas, aposentados e idosos e deficientes pobres.

O crescimento do mínimo ainda será acima da inflação, ao contrário dos anos de chumbo de Jair, mas é uma derrota para uma sociedade que tenta efetivar um salário mínimo que, para suprir as necessidades de uma família conforme previsto no artigo 7o da Constituição Federal, deveria ser de R$ 7.067,68 e não de R$ 1.518 — segundo o Dieese.

Isso sem contar as restrições ao BPC que, se não tivessem sido desidratadas, causariam um impacto ainda maior.

Ao mesmo tempo, a limitação dos supersalários do funcionalismo público, eliminando penduricalhos que garantem remunerações bem acima do limite constitucional de R$ 44 mil (sendo que o salário de ministros do STF vai a R$ 46,3 mil neste ano) ganhou um gatilho que permite que seja adiada e amenizada.

A proposta de emenda constitucional do ajuste fiscal previu que que as verbas indenizatórias terão de ser contabilizadas dentro do limite de salários. Mas que exceções à regra devem ser definidas por meio de lei comum, mais fácil de ser aprovada. Enquanto isso, os penduricalhos continuam sendo pagos.

Ao mesmo tempo, a proposta anunciada pelo ministro Fernando Haddad, que visa a recolher impostos sobre os rendimentos de quem ganha mais de R$ 600 mil por ano (R$ 50 mil/mês) partindo de um mínimo de 10% (o que significaria o início de uma taxação de dividendos hoje isentos), ainda não foi nem apresentada. O governo afirma que a mudança na taxação dos ricos virá mais para frente, junto com a proposta para isentar quem ganha até R$ 5 mil do Imposto de Renda.

Sem essas medidas de caráter civilizatório, o andar de cima dos setores público e privado foi poupado.

Quem acompanha a coluna sabe que venho defendendo que um pacote, para ser justo, deve aprovar uma pancada maior em quem ganha mais, protegendo o máximo possível os que sempre se lascam. E as duas coisas devem acontecer ao mesmo tempo. A questão aqui não é deixar de aprovar medidas austeras, mas socializar a chicotada.

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Claro que tirar dos ricos não vai resolver as questões fiscais do país. E que inflação é imposto que lasca principalmente os mais pobres. Mas é péssimo para a integridade de um país que, sob a justificativa de garantir a estabilidade financeira, seja subtraída grana de políticas usadas para garantir dignidade a quem tem menos enquanto que medidas envolvendo os que mais têm são postergadas.

Vou repetir uma analogia que uso sempre e quase naufraga de tão velha. Estamos todos no mesmo barco em uma democracia. O Brasil é um transatlântico de passageiros, com divisões de diferentes classes, com os mais ricos tendo mais conforto em suas cabines. Não estou entrando no mérito de como chegamos a essa situação, nem propondo uma revolução imediata para que cabines diferenciadas deixem de existir. Mas é fundamental que a terceira classe conte com a garantia de um mínimo de dignidade e primeira classe pague passagem progressivamente proporcional à sua renda.

Enquanto isso não acontece, seguimos parecidos, contudo, como um navio remado por escravizados que, a qualquer sinal de tempestade, aumenta a frequência do estalar do chicote sobre trabalhadores, enquanto a primeira classe ouve violino.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL