Trump lança bases de sua milícia armada particular ao perdoar golpistas
Com o perdão ou a comutação de pena conferidos a mais de 1,5 mil de seus seguidores que participaram de atos golpistas, como a invasão do Congresso em 6 de janeiro de 2021, o presidente Donald Trump lançou as bases de sua milícia particular. São centenas de pessoas, muitas delas fortemente armadas, que já eram seus súditos e, agora, devem sua liberdade a ele. As consequências disso são imprevisíveis para a democracia.
Trump é comandante em chefe das Forças Armadas dos Estados Unidos. Mas, em última instância, elas respondem à Constituição e não ao desejo pessoal de um mandatário caso este entre em guerra a seu próprio povo. O mesmo não pode ser dito de trumpistas radicais.
E esse exército particular, claro, não parte do zero. Entre os envolvidos nos planos golpistas de impedir a certificação da vitória de Joe Biden em janeiro de 2021 e manter Trump no poder estavam grupos armados bem organizados. Alguns de seus líderes haviam sido presos após a tentativa frustrada de golpe e, agora, foram soltos pelo presidente que retorna à Casa Branca. Como Enrique Tarrio, dos Proud Boys, e Stweart Rhodes, do Oath Keepers.
Os Oath Keepers são uma milícia de extrema direita formada por membros da ativa e da reserva de forças de segurança. Defendem que militares, policiais e socorristas não devem seguir ordens que violam a Constituição dos Estados Unidos - quer dizer, a interpretação da Constituição dada por suas lideranças. Já os Proud Boy são uma organização com características fascistas e de extrema direita, formada apenas por homens. Pesa contra ela denúncias de racismo, de defesa da supremacia branca e de violência.
Parte da militância extremista age como milícia não apenas nas redes sociais, mas também na vida offline. Atua para silenciar e punir aqueles que criam embaraços ao seu líder ou que questionam as ideias que ele sustenta. Esse ecossistema também inclui ações com ameaças às famílias das pessoas vistas como inimigas, terror psicológico, perseguição e ataques verbais em espaços públicos, difamação através da difusão de notícias falsas, agressões físicas e ameaças de morte.
E isso vale para extremistas dos mais diferentes matizes ideológicos e não apenas para os Estados Unidos.
Ação organizada e lobos solitários
Não é necessário que o líder supremo demande uma ação. Os seus comentários em textos e vídeos acusando jornalistas, cientistas, médicos, organizações sociais, bispas e padres, alimentam naturalmente as milícias que agem como matilhas para defendê-lo, tornando a vida de outros um inferno. E, se possível, transformar cada algo em um exemplo do que pode acontecer com quem fizer o mesmo.
No Brasil, isso aconteceu com frequência no governo anterior. Claro que há outros políticos, da esquerda à direita, que ostentam uma militância intolerante, que já chegou às vias de fato contra jornalistas, por exemplo. Também merecem o repúdio e punição. Mas inspirados por um presidente que, segundo a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), foi o principal agressor de profissionais de imprensa por entre 2019 e 2022, hordas bolsonaristas ultrapassaram todos os limites.
Estamos falando de algo bem mais complexo, que vai além de exércitos de perfis falsos pagos e fãs que fariam quase de tudo por seu herói. É violência política para moldar a opinião pública à sua imagem e semelhança. Tanto que, na eleição de 2022, vimos pessoas serem assassinadas. Como o petista Marcelo Arruda, morto pelo bolsonarista Jorge Guaranho, em julho daquele ano, durante sua festa de aniversário com temática lulista, em Foz do Iguaçu (PR).
Os Camisas Negras, do fascismo italiano, atacavam jornais, movimentos políticos, sindicatos, grevistas, intelectuais e quem ousasse ir contra os ideais que seus líderes defendiam. Pregavam, através do medo e da porrada, o nacionalismo e repudiavam o comunismo, o liberalismo e o pacifismo. Seria leviano comparar dois momentos históricos diferentes em poucas linhas. Até porque, a Itália da primeira metade do século 20 não contava com nossa tecnologia de comunicação, que garante que ações de justiçamento sejam promovidas de forma imediata e massiva, em sucessivas vezes, com baixo custo.
Hoje aponta-se para o "inimigo", inventa-se "crimes", e as milícias fazem o trabalho sujo. Esse tipo de ação - que nasce na rede e se derrama para fora - não pode ser encarada como algo banal. É grave e está diretamente relacionada à lenta corrosão de instituições.
Nesse caldo, casas começam a ser pichadas com frases preconceituosas, pessoas sofrem assédio pesado em seus locais de trabalho, profissionais apanham na rua enquanto trabalham ou manifestantes "do lado errado" correm o risco de morrer.
E, para além da milícia organizada, há também a ação pulverizada de lobos solitários. Qualquer um pode fazer parte disso, defendendo "o líder supremo".
Hoje, Donald Trump conta com o apoio da maioria da população, da Câmara e do Senado e da Suprema Corte. Sua milícia particular pode, nesse sentido, agir contra dissidentes em um neomacarthismo. Mas se perder o apoio da população e de instituições caso, por exemplo, não consiga baixar a inflação e melhorar o custo de vida, as milícias podem passar a defendê-lo com unhas, dentes e armas contra tudo e todos.
"Acabei de receber a notícia do meu advogado, eu fui perdoado. Obrigado, presidente Trump", afirmou Jacob Anthony Chansley, que invadiu o Congresso dos EUA no 6 de janeiro de 2021 com uma roupa de pele de urso e chifres e ficou conhecido como o "Viking do Capitólio" ou "QAnon Shaman".
"Agora vou comprar algumas armas", avisou, em postagem no X.