Supersalários na Justiça são fruto de hipocrisia dos Três Poderes
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É assustador o valor recebido por parte de alguns membros de carreiras do Poder Judiciário, dezenas ou centenas de vezes o salário mínimo com o qual milhões de pessoas operam mensalmente o milagre da sobrevivência. Pior: nove em cada dez magistrados no país ganharam mais que o teto do funcionalismo no ano passado, como exposto em reportagem especial de Tiago Mali, no UOL, nesta segunda (17).
Esse problema, contudo, não terá uma solução no curto prazo.
Respostas existem, mas ninguém quer tomá-las, seja por medo da reação de membros do Poder Judiciário, mas também da própria sociedade. Enquanto isso, segue o baile de dissimulação e de hipocrisia institucional, que envolve também as cúpulas dos poderes da República.
O artigo 37 da Constituição Federal limita a remuneração do funcionalismo público aos salários dos ministros do Supremo Tribunal Federal, que será de R$ 46,4 mil em 2025. Para aumentar o valor, enfia-se penduricalhos, bônus, compensações, auxílios e afins, criando remunerações que atingem centenas de milhares de reais. Para efeito de comparação, o salário mínimo recebido pelos mortais é de 1.518 jujubas.
A proposta de emenda constitucional do ajuste fiscal proposta pelo governo Lula previu que que as verbas indenizatórias terão de ser contabilizadas dentro do limite de salários. Mas que exceções à regra devem ser definidas por meio de lei comum, mais fácil de ser aprovada. Enquanto isso, penduricalhos continuam sendo pagos. No meio dessa discussão, representantes de categorias que seriam prejudicadas avisaram que o país sofreria um apagão no trâmite de processos legais caso os penduricalhos morressem de uma hora para outra.
Quatro elementos precisam ser levados em conta sobre essa discussão.
1) Quando o mercado pressiona para o ajuste fiscal, o comportamento da cúpula dos poderes têm sido fingir que pratica rigor fiscal e que a referência é e sempre será o teto do funcionalismo e que o que acontece fora disso é uma distorção que está sendo combatida. Pois é melhor fingir rigor e fazer vistas grossas com a remuneração extrateto do que bater de frente com a magistrados, promotores e procuradores que, depois, irão julgar as contas e os atos de atores públicos.
2) Há sim um comportamento patrimonialista de parte dos membros das carreiras de Estado, com os interesses privados sobrepostos à coisa pública. Isso envolve não apenas magistrados, promotores e procuradores, mas também funcionários do Congresso e do Executivo. E se na esfera federal pelo menos há um monitoramento maior por parte da imprensa e da sociedade civil, no âmbito estadual o pacto silencioso com a elite local é ainda mais barulhento. Ministros de tribunais superiores ou desembargadores e juízes de varas federais e trabalhistas tendem a ser mais escrutinados do que os estaduais, por exemplo, que muitas vezes são do mesmo grupo social do poder econômico e político local.
3) Há uma desigualdade estrutural no Brasil. Os magistrados europeus, por exemplo, ganham bem, mas não tantas e tantas vezes o que recebe um trabalhador braçal com contrato de trabalho por lá. Muitos funcionários de carreiras de Estado no Brasil não usam serviços públicos de educação, saúde, transporte e segurança, como não raro acontece por lá. No Brasil, sentem-se (e são) do estrato mais rico da sociedade, demandando recursos para garantir esse estilo de vida. As regras para a remuneração das carreiras de Estado tentaram dar alguma racionalidade à alta burocracia do Estado em meio a isso, mas não foram muito eficazes.
4) Magistrados e procuradores com os quais a coluna conversou sobre o assunto e que defendem a imposição de um teto ponderam, contudo, que não é possível aplicar o limite existente hoje. Apesar de reconhecerem que a diferença com a base da pirâmide é enorme, afirmam que há uma defasagem que precisaria ser corrigida antes da limitação — a maioria falou de um valor em mais de R$ 60 mil. Reconhecem que isso pode parecer bizarro em um país desigual como o nosso, mas não veem outra saída a não ser aumentar o teto para, com isso, cortar os penduricalhos. Afirmam que, dessa forma, consegue-se atrair bons quadros para as funções.
A reportagem do UOL aponta que a remuneração mensal líquida dos juízes, desconsiderando tribunais eleitorais, foi de R$ 59 mil em média, no ano passado, incluindo aí o valor pago a mais.
A pergunta que fiz a eles e elas é se isso iria satisfazer a maioria ou novos penduricalhos seriam criados, pois R$ 20 mil a mais para quem pode receber mais de R$ 500 mil com os adendos é apenas uma flatulência. E que se isso não iria gerar um impagável efeito cascata no resto da República. Responderam que hoje a situação já é impagável, com perspectiva da conta continuar crescendo. E afirmaram que, a partir daí, vai depender da atuação forte dos comandos das cúpulas dos Três Poderes para garantir que o limite seja respeitado. Ou rua.
Por enquanto, seja por medo ou leniência, não são tomadas medidas mais duras para manter os pagamentos dentro do teto. A falta de um comportamento republicano e racional transforma tudo em um grande baile de dissimulação.
O que, inevitavelmente, passa a imagem de que o essencial e fundamental sistema de Justiça, sem o qual não existe democracia, serve melhor a quem tem dinheiro e poder no país. O que inclui a si mesmo.