Vice de SP brinca com a vida do padre Júlio ao culpá-lo por cracolândia
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O padre Júlio Lancellotti tornou-se, há tempos, alvo de grupos que têm nojo da população em situação de rua e raiva de usuários de drogas. Para quem é guiado pelo ódio, basta apenas uma incentivo ou chancela de um líder para transformar ataque digital em físico. Postagens como a do vice-prefeito de São Paulo, o coronel Ricardo Mello Araújo (PL), culpando sem provas o religioso pelo surgimento de uma cracolândia, funcionam como esse empurrãozinho.
O vice publicou um vídeo no Instagram falando de ações contra o tráfico de drogas na região central da cidade, incluindo demolições de cortiços e realocação de moradores. Ao responder um comentário de um internauta, que o convidou a ir à cracolândia no bairro do Belenzinho, o coronel respondeu "culpa do Lancelot (sic), está fazendo um desserviço".
Isso gerou uma reação de extremistas contra o coordenador da Pastoral do Povo de Rua, mas também uma avalanche de críticas a Ricardo Mello na postagem original - em que ele havia dito que seu trabalho estava alinhado com o governador Tarcísio de Freitas e o prefeito Ricardo Nunes.
"Com essa forma de exposição, o vice-prefeito coloca a minha vida em risco, fomentando a ação de grupos radicais, pois o que ele fala tem peso", disse o padre Júlio à coluna.
Linchar o Padre Júlio em praça pública é bem recebido por uma parcela que quer calar o incômodo causado pela existência de miseráveis. Mas também por aqueles que, preocupados com a grave situação social que temos no Centro de São Paulo, não culpam as causas que levam pessoas à situação de rua ou à dependência de drogas, mas aquele que tenta aliviar a dor delas. Talvez na expectativa de que morram todos por inanição, frio ou calor. Sem contar os arautos da especulação imobiliária, que são os verdadeiros donos da capital.
Não é a primeira vez que políticos atacam o padre Júlio. Mesmo a tentativa recente da CPI das ONGs, ou melhor dizendo, a CPI do Padre Júlio, em São Paulo, padeceu de falta de criatividade. Excitados, os eleitores da extrema direita são mais facilmente mobilizados para cumprir tarefas em nome de suas lideranças. Temos um ex-presidente que se tornou especialista em manter seus seguidores radicais alertas de olho em suas necessidades particulares e políticas.
E diante da defesa da ação do padre Júlio e de tantas outras pessoas que dedicam sua vida àqueles que a sociedade rejeitou, sempre aparece aquela frase: "Tá com dó? Leva pra casa!"
Ela é um clássico da internet. Proferida ad nauseam quando o tema é a vida enfrentada pela gente pobre, abandonada, drogada e prostituída que atrapalha a imagem que uma parte de São Paulo tem de si mesma. Ignora que não é levar o povo para a casa, mas fazer com que União, Estado e município cumpram sua função de garantir o mínimo de dignidade a quem não pode pagar por uma.
Gastamos mais tempo em atacar quem dedica sua vida a um problema do que investimos na solução deste problema. Faz sentido para uma sociedade que se orgulha de sua tolerância com as vidas que acredita não valerem nada contanto que elas não atrapalhem esteticamente a vista. E não façam barulho ao morrerem.
Padre Júlio, ao dedicar a vida àqueles que o resto da sociedade trata pior do que lixo, é um lembrete da hipocrisia de quem enche a boca para falar da solidariedade presente nas sagradas escrituras do cristianismo, mas não quer coloca-la em prática. Não sou um homem de fé, mas o convite feito pela pregação de Jesus de Nazaré é simples, mas significa mudanças profundas que muitos que dizem "amém" não estão dispostos a fazer.
Aqui me lembro de uma citação atribuída ao já falecido Hélder Câmara, arcebispo de Olinda e Recife, que lutou contra a ditadura e esteve sempre ao lado dos mais pobres: "Se falo dos famintos, todos me chamam de cristão, mas se falo das causas da fome, me chamam de comunista".
Políticos dizem não incitar a violência com suas palavras. Por vezes, não são eles que atacam, mas é a sobreposição de seus discursos ao longo do tempo que distorce o mundo e torna a agressão banal. Ou, melhor dizendo, "necessária'' para tirar o país ou a cidade do caos e levá-los à ordem. Acabam por alimentar a intolerância, que depois será consumida por seguidores inconsequentes que fazem o serviço sujo. Achando que estão em uma missão divina, apesar de estarem representando o outro lado.