Leonardo Sakamoto

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Opinião

Há um Brasil que chora prisão de golpista e louva morte de quem furta sabão

A Polícia Federal prendeu o empresário Marcelo Fernandes Lima, que furtou uma réplica da Constituição, e está julgando Débora Rodrigues Santos, que pichou a estátua da Justiça. Ambos os casos ocorreram nos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023 em Brasília. Muitos dos que dizem que isso é injusto bateram palmas quando um policial militar matou com 11 tiros pelas costas um jovem que furtou pacotes de sabão líquido em São Paulo.

A impressão é que a extrema direita descobriu a ideia de dosimetria de pena somente após a tentativa de golpe de Estado. Mas quem já furtou comida ou bens de valores insignificantes tem outra impressão: que a decisão sobre a pena depende da cor da pele e da classe social.

Considero a discussão sobre tamanho de penas válida, mesmo quando envolve pessoas acusadas de participar de tentativa de golpe de Estado, abolição violenta do Estado democrático de Direito e dano qualificado, como é o caso de Marcelo e Débora (não, a punição não foi só por furtar um livro e sujar uma estátua). Mas para que ela não seja hipócrita, precisamos debater o que acontece com outro lado e que boa parte dos autointitulados homens e mulheres de bem não dá a mínima.

Pois há uma parcela que acha injusto punir alguém por tentativa de golpe de Estado com penas que vão de 14 a 17 anos, mas aceita a pena de morte informal a quem furta Omo líquido. A diferença de tratamento não surpreende em uma sociedade em que a ideia de "bandido bom é bandido morto" tem aderência. Com exceção de quem sonega imposto. Aí, não, pois esse furto é visto como heroísmo.

As redes sociais foram bem transparentes ao afirmarem que Gabriel mereceu ter seu CPF cancelado porque era ladrão, o que negou a ele a empatia de muita gente. Não há pena de morte no Brasil e ninguém estava em risco na unidade do Oxxo assaltada, mesmo assim o PM Vinicius de Lima Britto achou que que podia abraçar a função de promotor, juiz e carrasco e dar 11 tiros nas costas do rapaz. Cheguei a encontrar mensagens que o felicitavam por um "ladrãozinho negro" a menos em uma rede social que mandou a moderação do ódio às favas.

Diante de uma polícia com baixo índice de resolução de crimes, casos como a execução de Gabriel são vistos como uma forma de vingança. Miliciana, violenta e injusta, claro.

Claro que, novamente, escolhe-se o bandido com quem sentir empatia. Pois, fazer parte da invasão e depredação das sedes dos Três Poderes para ajudar em um plano de golpe de Estado e, portanto, espancar a democracia, é muito mais grave. Mas por aqui quem tenta golpe de Estado, surrupia joias dadas ao Brasil e é leniente à morte de 700 mil durante a pandemia é premiados com gritos de "mito" e promessas de voto nas eleições pelas mesmas pessoas que sapatearam no corpo de Gabriel.

São muitos os casos de pessoas condenadas por roubar carne, xampu, chocolate. Isso quando não rola pena capital. Dois homens foram torturados por cinco seguranças do supermercado UniSuper, em Canoas (RS), diante do gerente e do subgerente da loja, após tentarem furtar duas peças de carne. Vítima das piores agressões, um homem negro foi colocado em coma induzido no hospital com fraturas no rosto e na cabeça. E um tio e um sobrinho, que furtaram carne de uma unidade do Atakadão Atakarejo, em Salvador, foram encontrados mortos com sinais de tortura e marcas de tiro.

Prender alguém por conta de dois quilos de picanha não vai ajudar em sua reinserção social ou mesmo evitar novos furtos. Mesmo a abertura de um processo é, a meu ver, acintoso, pois força o Estado a gastar tempo, recursos humanos e dinheiro em algo cuja solução não passa pela cadeia. Imagine se ao invés de um pedido de pena privativa de liberdade, desde o começo, fossem propostas horas de prestação de serviços à comunidade ou a obrigatoriedade de frequência em algum curso.

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Ninguém está defendendo quem erra ou comete crimes. O que está em jogo aqui é que tipo de Estado e de sociedade que estamos nos tornando ao acreditarmos que punições severas para coisas ridículas (mesmo reincidentes) têm função pedagógica enquanto defende-se impunidade para ataques à democracia. Desde quando a República passou a valer mais do que acém com osso?

Dois homens furtaram um macaco velho de carro, dois galões de plástico vazios e menos de um litro de óleo diesel e foram condenados, um a 10 meses e 20 dias, outro a 2 anos e 26 dias de prisão. A 1ª Turma do STF, a mesma que deve julgar os líderes da conspiração golpista, rejeitou, em 2023, a aplicação do princípio da insignificância aos dois em itens avaliados em R$ 100 e manteve as condenações.

Não há registro de protestos da extrema direita contra a decisão.

Em tempo: Muitos dizem o 8 de janeiro de 2023 não teve caráter golpista porque foi organizado por "senhorinhas com uma Bíblia debaixo do braço e senhorzinhos com a bandeira do Brasil nas costas". Vale lembrar o caso de Fátima Mendonça Jacinto Souza, a Dona Fátima de Tubarão. Exaltada em um vídeo gravado pelos próprios golpistas por estar "quebrando tudo", ela é uma das acusadas. Antes do envolvimento nos atos golpistas, já havia sido condenada por tráfico de crack, usando jovens menores de idade, em 2014. Também tentou fraudar o INSS e usou documentos falsos. Nas redes, defendia o voto impresso e criticava a urna eletrônica, repetindo as palavras do "mito". Era chamada de uma mulher de bem.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL