Em 100 dias, Trump manipula 'bom senso' para legitimar o extremismo
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Ao celebrar 100 dias de sua administração em um comício no Michigan, nesta terça, o presidente Donald Trump retomou uma declaração que deu ao tomar posse, defendendo que "o mundo está vendo uma revolução do bom senso". A narrativa, que tenta convencer que ele é um líder que faz o que o povo pensa e quer, também está grávida de violência e autoritarismo.
Algo vinculado ao "bom senso" ou ao "senso comum" é extremamente palatável porque se conecta a uma saída compreensível e óbvia, não raro associada à sabedoria popular. A questão é que, às vezes, o senso comum está correto, mas nem sempre. Linchamentos virtuais ou físicos são a prova disso.
Justificadas pelo "bom senso", políticas e mudanças acabam sendo empurradas goela abaixo — afinal, ela seria a saída correta, a mais conhecida e a que mais faz sentido para muita gente. "E se faz sentido para uma multidão, não pode estar errada, não é?", pergunta um morador na Berlim de 1933.
Sim, o uso do "bom senso" como justificativa para ação pode ser violento e autoritário caso manipulado por lideranças políticas, religiosas e sociais.
Cavalgando a desculpa do "bom senso", Trump desmantelou programas de diversidade, retrocedeu décadas em questões de identidade e gênero, demitiu milhares de servidores públicos que cuidavam de políticas fundamentais para a população dos EUA e do mundo, desarticulou medidas de combate às mudanças climáticas, expulsou migrantes de forma violenta, estabeleceu uma estúpida guerra tarifária com os demais países, passou pano para a Rússia que invadiu a Ucrânia e até começou uma cruzada pelo fim dos canudinhos de papel. Tudo em 100 dias.
Trump surfa esse discurso há muito tempo. Afirmando que seus adversários não estão alinhados ao bom senso dos valores da América, o presidente manipula. Pois é ele quem elege quais valores o povo deve seguir e esconde outros, como respeito aos direitos civis e acolhimento aos estrangeiros — que são parte importante da história dos EUA.
Mas para uma multidão de norte-americanos assustada com a perda de empregos para a periferia do mundo e com mudanças em costumes e comportamentos que invadem a própria casa sem explicar por que o passado não serve mais, abraçar quem exalta a "sabedoria intuitiva" é uma boia de segurança.
Ao utilizar o "bom senso" como um atalho discursivo, sugerindo que suas posições são incontestáveis e compartilhadas pela maioria dos cidadãos, Trump ignora deliberadamente a complexidade das questões políticas. Quando afirma que qualquer pessoa com bom senso apoiaria a anexação da Groenlândia ou a retomada do Canal do Panamá, está transformando opiniões políticas particulares em verdades autoevidentes.
O "senso comum", contudo, não é um conceito objetivo — ele varia conforme valores culturais, experiências pessoais e contextos históricos. Ao invocar essa noção, Trump não debate, impõe. Seus adversários, por consequência, são colocados na posição de "irracionais" ou "elitistas desconectados do povo".
Enquanto isso, ele também vai além. O "bom senso" não é apenas a opinião de uma parte da população, por vezes construída com bases preconceituosas, discriminatórias e racistas (por, exatamente, serem erguidas a partir do medo e da ignorância), mas também tudo aquilo que ele próprio defende como certo.
Em outras palavras, não é que ele deseja o " bom senso", o "bom senso" é o que ele deseja.
Outro aspecto perigoso dessa retórica é a ideia de que Trump indica que governa com uma lógica prática, desprovida de ideologia. Na realidade, seu governo é marcado por medidas profundamente ideológicas conectadas à extrema direita. Chamar essas ações de "senso comum" é uma forma de esvaziar o debate público, sugerindo que não há alternativas válidas.
Pior: que essas alternativas são "comunismo", palavra que vem sendo esvaziada de seu significado original para dar lugar a uma espécie de "apito de cachorro", informando aos membros de seu grupo que aquela pessoa ou ideia são ruins.
Dessa forma, o uso do "bom senso" serve para reforçar a narrativa de que Trump seria o porta-voz de uma "maioria silenciosa" — um recurso clássico de líderes populistas, que se apresentam como únicos intérpretes da vontade popular, mesmo quando suas políticas beneficiam minorias privilegiadas.
Tudo isso simplifica debates complexos, deslegitima críticas e consolida uma visão de mundo específica como se fosse a única possível. Em um cenário de polarização extrema, esse tipo de linguagem contribui para o enfraquecimento do diálogo democrático, substituindo argumentos por slogans supostamente irrefutáveis.
O verdadeiro "senso comum" deveria ser a defesa de fatos verificáveis, do respeito às instituições e do debate plural — valores que, ironicamente, o trumpismo despreza. Enquanto ele continuar a usar essa expressão como um martelo retórico, a democracia dos EUA seguirá afundando na lama.
Foram só 100 dias. Faltam 1.360.