Índia promete atacar Paquistão com água, que pode matar tanto quanto bombas
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Enquanto o Brasil foca a atenção no conclave que vai escolher o sucessor do papa Francisco, a violência volta a escalar na Caxemira, uma das regiões mais tensas do planeta, opondo Índia e Paquistão. Estima-se que ambos os países tenham mais de 170 ogivas nucleares cada. Ironicamente, contudo, o maior risco neste momento não é uma escaramuça com bombas, mas com água — o que levaria à inviabilidade do vizinho e a uma catástrofe humanitária.
Em 22 de abril, um ataque na Caxemira indiana deixou 26 turistas mortos. Nova Delhi acusou o vizinho de apoiar grupos terroristas, enquanto Islamabad disse que não tinha nada a ver com isso. Nesta terça, a Índia atacou o Paquistão, que prometeu retaliar, deixando 26 mortos até agora.
Se você faltou às aulas de história porque achava que isso era coisa de comunista, um resumo: a região, que contava com relativa autonomia em relação ao Império Britânico, é disputada pelos dois países desde a independência de ambos na década de 1940. Hoje, ela é precariamente dividida entre eles e a China (outra potência nuclear), e não há consenso sobre a fronteira.
Tiros nunca deixaram de ser ouvidos entre os exércitos envolvidos, que foram à guerra várias vezes. Muito menos ataques terroristas sob justificativa étnica ou religiosa, opondo hindus e muçulmanos.
A chance de o conflito ganhar proporções muito maiores que os anteriores, por mais que a turma do deixa-disso internacional já tenha entrado em campo, é a ameaça de Nova Delhi de que, desta vez, vai bloquear o fluxo de água do rio Indo para o Paquistão. Nesta terça (6), os indianos anunciaram que vão cortar a água dos rios que nascem em seu território e seguem para o vizinho em retaliação ao atentado na Caxemira indiana em abril.
"A água que pertence à Índia e que até agora fluía para fora será retida para servir aos interesses da Índia e será utilizada dentro do país", declarou o primeiro-ministro Narendra Modi.
Isso significa tornar insustentável a vida desse país com área menor que a soma da Bahia e do Maranhão, mas 247 milhões de habitantes, ou seja, 40 milhões a mais que o Brasil, muitos desertos e população principalmente rural.
Conheci os milenares canais de irrigação do Indo ao viajar de norte a sul do país quando fui cobrir conflitos no Paquistão. É uma maravilha da engenharia, com um dos maiores sistemas de irrigação por gravidade do mundo. O curso de água corre muitos metros acima da nível do rio, sem uso de bombas, pois são captadas centenas de quilômetros acima e seguem em desnível menos acentuado.
O sistema começou a ganhar modernização no século 19 e nunca parou de se expandir, garantindo a agricultura especialmente nas regiões do Punjab e de Sindh.
Ele depende da água que vem do Himalaia indiano para existir. Um tratado de 1960 estabeleceu a divisão desses recursos e vinha sendo respeitado. Em 2018, Modi já havia ameaçado suspender o acordo e "fechar a torneira do rio Indo", ou seja, condenar o vizinho a ser um deserto improdutivo. Após o ataque terrorista, disse que não irá mais cumprir o tratado.
A bacia do Indo é caudalosa, ou seja, não se bloqueia cursos d' água como aqueles que a formam sem grande prejuízo para o seu próprio lado. O que não significa que ações não podem ser tomadas, criando pânico. O que, claro, empurraria o Paquistão para escalar o conflito.
Se há algo que motiva as nações à guerra, ainda mais do que o petróleo, é o acesso à água. Islamabad indicou que o vizinho já teria reduzido a vazão do rio Chenab, um dos afluentes do Indo. Afirmou que se Modi cumprir o que anunciou será a guerra. Uma guerra pela água com potenciais desdobramentos nucleares.
Historicamente, os Estados Unidos foram grandes fornecedores de material bélico para o Paquistão desde a guerra contra o Afeganistão até o combate à Al-Qaeda, que se muquiou nas montanhas no noroeste do país. Hoje, a China é a sua principal vendedora de armas. Enquanto isso, a Índia, que comprava principalmente da União Soviética e, depois, da Rússia, passou a adquirir bastante de aliados da Europa Ocidental, Israel e dos próprios EUA. O que aponta mudanças no alinhamento político.
O nacionalismo indiano cresceu sob o primeiro-ministro Narendra Modi. Da mesma forma, o ressentimento com o Ocidente também escalou em todo o mundo islâmico nos últimos anos.
Pode ser que os ânimos se arrefeçam e a situação volte ao que era antes, em que tiros são ouvidos de um lado para outro da Caxemira, uma das regiões mais militarizadas do planeta.
Paz é algo distante, mas levando em conta a quantidade de ogivas nucleares no estoque, começar um conflito com armas não convencionais poderia significar destruição mútua assegurada. E a contaminação da guerra para outros cantos do mundo.
Eu, que não sou um homem de fé, desconfio que esse é um tema que mereça uma oração de quem não desgruda do conclave.