Leonardo Sakamoto

Leonardo Sakamoto

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Presidente da Câmara erra, polarização social no Brasil já tem 500 anos

No afã de rebater as críticas de que a Câmara dos Deputados costuma defender os interesses dos mais ricos, o presidente Hugo Motta (Republicanos-PB) recorreu a uma declaração que não sobrevive a um farfalhar de páginas de um livro de História do ensino fundamental.

"A polarização política tem cansado muita gente, agora querem criar a polarização social", disse em uma postagem nas redes.

A polarização social não é coisa nova criada agora. Foi implementada por aqui no momento em que o primeiro português escravizou o primeiro indígena para que ele carregasse na lomba a primeira tora de pau-brasil para a sua nau. Desde então, lá se vão mais de 500 anos de uma história forjada na escravidão que, depois, se adaptou em superexploração do trabalho, jornada 6 por 1, e coisas do gênero.

Quem acha isso um absurdo, vale lembrar que foi só em 2013 que o Congresso aprovou uma emenda constitucional equiparando as empregadas domésticas ao restante dos trabalhadores, o que ainda provoca muito ranger de dentes em setores da sociedade. Não foi ideia brilhante do parlamento, mas ocorreu após a Organização Internacional do Trabalho aprovar a convenção 189 com esse tema.

Do ponto de vista de parte do andar de cima, somos um transatlântico reluzente, com cabines diferenciadas, da primeira à terceira classe, de acordo com os esforço de cada um em comprar sua passagem - mesmo que aquilo que chamam de "meritocracia" seja hereditária por aqui.

A imagem é uma autoficção, claro, pois nunca deixamos de ser um navio que trafica mão de obra e que, ao primeiro sinal de tempestade no horizonte, aumenta a frequência do estalar do chicote sobre trabalhadores, enquanto os donos do empreendimento ficam protegidos, ouvindo violino e bebendo uísque.

Não estou entrando no mérito de como chegamos a essa situação, nem propondo uma revolução imediata para que cabines diferenciadas deixem de existir. Mas é fundamental que, se quisermos usar a analogia que estamos todos no mesmo barco, a terceira classe conte com a garantia de um mínimo de dignidade em tempos difíceis e a primeira classe pague passagem de forma proporcional e progressiva à sua renda.

Quem acompanha a coluna sabe que defendo que um pacote, para ser justo, deve aprovar uma pancada maior primeiro em quem ganha mais, protegendo o máximo possível os que sempre se lascam. A questão aqui não é deixar de aprovar medidas austeras, mas socializar a chicotada.

Claro que tirar dos ricos, cobrando deles uma porcentagem de Imposto de Renda pelo menos semelhante ao que paga a classe média baixa, não vai resolver as questões fiscais do país.

Continua após a publicidade

Mas é péssimo para a integridade do Brasil que, sob a justificativa de garantir a estabilidade financeira, seja subtraída grana de políticas usadas para garantir dignidade a quem tem menos enquanto que medidas envolvendo os que mais têm são postergadas.

O presidente Motta afirmou que "quem alimenta o nós contra eles acaba governando contra todos". Mas quem ignora que o poder tem dono, acaba mantendo a desigualdade como sempre foi.

A desigualdade social dificulta que as pessoas vejam a si, e aos demais, como merecedores de igual respeito e consideração. E impacta o modo como as instituições se relacionam com a sociedade. Ou seja, passam a servir apenas a um grupo.

O Congresso Nacional parece ter perdido o pudor de dizer que tem lado. Não que precisemos de legenda, claro.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL