Com dados sobre YouTube, governo quer frear ódio contra mulher na internet
A ministra Cida Gonçalves (Mulheres) disse nesta sexta (13) que pretende encaminhar à bancada feminina do Congresso uma proposta para criminalizar o discurso de ódio contra a mulher na internet. A medida pode ser feita via projeto de lei ou por meio de uma discriminação de gênero na lei de racismo, por exemplo.
A legislação atual prevê pena para apologia ao crime. No entanto, o discurso de ódio contra mulher na internet é muitas vezes disfarçado de piada com direito à liberdade de expressão. E as plataformas sociais não removem o conteúdo, que chega disfarçado ao vídeo, e gera dinheiro.
"São coisas importantes que temos que começar, a partir desses dados, a trabalhar no aprofundamento. E, na minha avaliação, sobre tipificação [penal]. É a melhor forma que temos de coibir algum tipo de ação", afirmou. "Não tínhamos os dados, agora temos."
O ministério apresentou um estudo do NetLab, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), sobre a disseminação de discursos misóginos no YouTube. Esses conteúdos são monetizados, ou seja, os responsáveis ganham dinheiro cada vez que um internauta assiste a um vídeo que trata sobre aversão a mulheres. O conteúdo geralmente traz ataque à aparência e humilhação de grupos, (principalmente sobre peso e idade); ou questionando direitos em lei —como pensão alimentícia e proteção de vítima de violência. Há, até mesmo, curso para ensinar advogado atuar contra a mulher em processo de separação.
O estudo identificou também um vídeo que tratava sobre programa espião para o homem instalar no WhatsApp da mulher — o que é crime tipificado em dois artigos da Lei Penal e em outro sobre interceptação telefônica.
O documento mostra que 137 canais de influenciadores publicaram mais de 105 mil vídeos que tiveram mais de 3,9 bilhões de visualizações. Esses conteúdos também são monetizados.
"Vamos estabelecer um diálogo com MP [Ministério Público], AGU [Advocacia-Geral da União], bancada feminina. Algumas coisas precisam ser tipificadas a nível de legislação. Não só a regulação [das redes], mas [a lei] tem que dizer o que se torna violento dentro das redes sociais", disse a ministra.
A ideia é apresentar a proposta a partir de março, depois da eleição das mesas na Câmara e no Senado, marcada para fevereiro.
Degradação da mulher na internet aumentou desde 2022
O estudo do NetLab mostra que o número de vídeos com conteúdo de ódio contra a mulher aumentou a partir de 2022.
"A degradação e desumanização das mulheres ocorre, em parte, por meio de fortes críticas à aparência física. Reduzidas a objetos sexuais ou parceiras reprodutivas, as mulheres são avaliadas com notas por sua aparência e descartadas caso sejam gordas, tenham mais do que 30 anos, sejam consideradas feias ou com baixo 'Valor Sexual de Mercado'. Além disso, são desumanizadas em imagens humilhantes que as retratam em posições de subjugação", informa o documento.
O estudo também identificou que esses influenciadores empregam diversas estratégias para fugir da moderação do YouTube, como a criação de vocabulário próprio, imagens, humor, sarcasmo e ironia, com dados enganosos ou descontextualizados para disseminar misoginia. "Dessa forma, propagam discursos de ódio contra mulheres de maneira indireta, sem necessariamente utilizar palavras obviamente ofensivas ou de baixo calão."
O material inclui teorias conspiratórias contra a igualdade de gênero e comportamentos nocivos às mulheres disfarçados de estratégias de valorização dos homens.
A ideia disseminada é de que as mulheres são inimigas, oportunistas ou "parasitas emocionais" dos homens e por isso eles devem usar táticas de manipulação e abuso psicológico, como formas de "dominação" masculina.
A pesquisa encontrou 89 canais que promovem a ideia de que as mulheres devem ocupar um papel secundário na relação com homens, devendo a eles servidão, seja na esfera do relacionamento ou da família.
Congresso se abstém e YouTube ignora problema
A violência contra a mulher na internet poderia ser resolvida por meio de uma regulamentação das redes sociais que obrigasse as plataformas a remover conteúdo ilícito, mas o Congresso já deixou claro nos últimos anos que essa pauta não vai avançar.
A alternativa, portanto, é encontrar outros caminhos para punir os criminosos e obrigar as redes a remover os conteúdos.
"Tem muita distorção neste debate, mas o importante, e grave, é a gente ver a misoginia se tornar um mercado, um negócio, ganhar dinheiro com isso. Esse volume parece ser muito grande. E essa criação desse mercado envolve treinamento, curso, educação de meninos que estão sendo educados para a violência", disse Marie Santini, do NetLab.
Ela diz que, quando a plataforma é questionada sobre esse tipo de estudo, normalmente responde que tem termos de uso que o internauta assina e que não permite esse tipo de conteúdo. "Mas, se tem termo de uso, como a gente pode encontrar essa quantidade de conteúdo misógino na plataforma? Elas não respondem a essa pergunta."
Santini diz que as plataformas também costumam relativizar o volume de dados, além de não dar transparência ao nível de monetização desse tipo de canal.
João Brant, secretário de Políticas Digitais, diz que o governo federal tem trabalhado desde o começo do ano passado para fazer avançar a regulação no Congresso Nacional, "que precisa se sensibilizar para a gravidade e urgência dos problemas".
"A AGU se posicionou em nome do governo cobrando responsabilidade objetiva das plataformas no caso de conteúdos ilegais e ilícitos, além de uma ação de dever de precaução e prevenção de conteúdos danosos. Tem coisa que não está tipificada [como crime], mas que causa muitos prejuízos aos direitos das mulheres e ao conjunto da população", afirmou.
A advogada Fayda Belo, especializada em crimes de gênero, diz que os legisladores precisam criar uma obrigação de filtro para remover esses vídeos. "Quem está olhando isso? Quem faz triagem do que é ódio e do que não é?"
O YouTube informou que "teve acesso à pesquisa há instantes e ainda não houve tempo hábil para análise do estudo" e que passará informações "em caso de atualização".
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