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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Na República das Excelências, cidadão tem a lei e poderosos, as brechas

Bolsonaro na motociata Acelera pra Jesus, em São Paulo - Alan Santos/PR
Bolsonaro na motociata Acelera pra Jesus, em São Paulo Imagem: Alan Santos/PR

Colunista do UOL

06/06/2022 04h00

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Há anos a política brasileira tem se confundido com as páginas policiais. Nas últimas décadas, desde a redemocratização, tivemos algumas fases muito marcadas. Num primeiro momento houve o protagonismo do Congresso Nacional. O primeiro presidente eleito após a Constituição de 1988 sofreu um processo de impeachment acompanhado pelo país como novela.

O Legislativo continuou protagonista na era das grandes Comissões Parlamentares de Inquérito, que se arrastou até o primeiro governo de Dilma Rousseff. Durante o escândalo do Mensalão, inauguramos a era da transmissão de CPI em telão de bar, como se fosse um jogo de futebol. Foi nesse clima que o brasileiro começou a tomar mais gosto por política.

Com o passar dos anos chegamos à era das manifestações de rua de 2013. Diferentes das tradicionais passeatas de movimentos sociais e estudantis, focavam em ações contra políticos e formaram uma geração de novas lideranças.

Ícones políticos, como Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva, já têm passeatas a favor. O atual presidente inaugurou uma era em que ele próprio convoca até motociatas e lanchaciatas. O ex-presidente, que unia sua base social em protestos trabalhistas, agora aglutina gente em repúdio às ações judiciais contra ele.

A situação evoluiu de tal forma que até figuras menores ganharam suas torcidas contra ações judiciais, principalmente o inquérito do STF sobre financiamento de ações digitais e desinformação. Do grupo extremista "300 pelo Brasil" a comunicadores e políticos ligados ao governo, todos tiveram suas torcidas contra e a favor.

Agora até a esquerda entrou na história. O mítico Partido da Causa Operária foi inserido formalmente no inquérito do STF, o mesmo que investiga figuras ligadas ao bolsonarismo. Passou a ter também seus defensores. Curioso que entre eles estejam aqueles que até outro dia militavam pela criminalização do comunismo no Brasil.

Todos reclamam de vícios formais e excessos. Claro que há o famoso "jus esperneandi", mas muitas vezes eles têm razão e o próprio Judiciário acaba reconhecendo os pleitos dos advogados de defesa. As torcidas favoráveis e contrárias acompanham cada passo — tanto real quanto imaginário — de perto pelas redes sociais.

Acompanhamos a política como se fosse um filme, talvez esquecendo que ela rege nossas vidas e não vivemos na ficção. Será que todo cidadão tem o direito de ter sua causa analisada com tanto cuidado quanto aqueles ligados ao poder? Não sei responder, mas conto um caso real.

Em 2019, um cidadão vendeu na catraca do metrô Corinthians-Itaquera, em São Paulo, duas passagens por R$ 4. Elas custavam R$ 4,30 cada mas ele pagou com o cartão estudantil dos filhos, então saíram as duas pelo preço de uma. Foi preso com R$ 8, sendo que R$ 3,70 seriam prejuízo aos cofres públicos pela fraude.

Na delegacia, disse que fez por desespero, estava em dificuldades financeiras. Não tinha antecedentes criminais. Foi processado pelo Ministério Público, condenado em primeira instância. O Tribunal de Justiça de São Paulo negou o pedido dos advogados pelo trancamento da ação penal. O caso foi para o Superior Tribunal de Justiça.

Esta semana, a ministra Laurita Vaz, relatora do RHC 153480-SP decidiu trancar a ação penal pelo princípio da insignificância. Não falamos aqui de devolver os R$ 3,70 para o metrô mas de punição penal por estelionato. É uma situação absurda mas não ilegal, está dentro das leis e do sistema. Isso é o mais assustador.

As mesmas leis e o mesmo sistema produzem uma disparidade incrível de tratamento entre quem está perto e longe do poder. É a República das Excelências.