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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nelson Piquet e a indústria do marketing da justiça social

9.11.2014 - Nelson Piquet no GP de Interlagos em 2014 - Mark Thompson/Getty Images
9.11.2014 - Nelson Piquet no GP de Interlagos em 2014 Imagem: Mark Thompson/Getty Images

Colunista do UOL

29/06/2022 04h00

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O sonho dos Che Guevaras de apartamento que vociferavam nas redes sociais contra patrocinadores de Fórmula 1 é ser o oposto de Nelson Piquet. Sinto estragar o sonho, fazem parte do mesmo universo.

O ex-piloto, que calado sempre foi um poeta, não precisou de mais uma palavra para expor como enxerga o mundo. Usou duas vezes a palavra "neguinho" para se referir ao maior campeão de Fórmula 1 da história, Lewis Hamilton.

Fiquei surpresa que a entrevista explodiu só agora na internet mas foi dada em novembro do ano passado ao canal Motorsports Talk. Um seguidor disse que eu não estranharia o atraso se fosse de Rubens Barrichello, no que ele tem razão.

Infelizmente também não estranho o comportamento racista de Nelson Piquet, que repudio. Aliás, o jornalista que o entrevistou estranhou muito menos que eu.

Ouviu duas vezes a palavra "neguinho" em vez do nome de Hamilton e nem perdeu o rebolado. A entrevista seguiu normalmente. Poucos espaços são tão elitistas, masculinos e brancos quanto a Fórmula 1. São os últimos a evoluir culturalmente e abrir mão dos próprios preconceitos.

Quer dizer, seriam os últimos. O que se viu depois mostra que o capital bem aplicado pode permitir à elite da elite manter intactos seus privilégios e preconceitos enquanto posa de inclusiva.

O racismo é uma questão grave e estrutural da sociedade, que começa a ser superada por leis, mas ainda é uma realidade. Para ser superado, é preciso quebrar barreiras culturais e sociais.

Esse é um papel da cidadania e das instituições, que foi recentemente capturado pelo mundo corporativo. Não tem a menor chance de dar certo um projeto de inclusão social e democrática que venha justamente do que criamos de menos democrático e inclusivo: as corporações gigantes.

Ocorre que é muito chato pensar nisso. Mais chato ainda se eu gostar de Fórmula 1, me identificar com esse ambiente que gerou e tolera um Nelson Piquet, mas sentir culpa.

Se houvesse vontade, haveria inúmeras fórmulas para que o ambiente de superluxo desse esporte fosse pelo menos um pouco menos racista, machista e homofóbico. O problema é que aí precisaria querer mudar e talvez até mudar mesmo.

Em vez de ter todo esse trabalho e arriscar uma frustração com o resultado das mudanças, já existe uma solução mágica. Basta utilizar a indústria do marketing da "justiça social".

O episódio obviamente não será visto como um problema a ser superado de forma coletiva, principalmente enfrentando a permissividade. Será creditado exclusivamente em um indivíduo e todas as medidas vão envolver redes sociais e marketing de empresas.

Eu não sou contra as notas de repúdio das empresas, elas são importantes. Mas sozinhas, como já bem sabemos na política brasileira, não mudam a realidade. Talvez sejam úteis exatamente por isso, sinalizar virtude sem ter de abrir mão de privilégios.

É um avanço ver a preocupação em dizer que são contra o racismo. Como só houve um piloto negro na história, muita gente poderia achar que não são.

Somente em 2007 um negro chegou aos circuitos oficiais. Em 1986, Willy Theodore Ribbs Jr. chegou a atuar como piloto de testes da Brabham em Estoril, mas não entrou em corridas oficiais nessa categoria.

O pior nesse caso foi ver um passo além do marketing, a tentativa de dizer que a Fórmula 1 é um esporte inclusivo, o que beira o deboche. A graça é justamente ser exclusiva, só para a elite e com o condão de dar a sensação aos seus fãs de ser parte dessa elite.

A Mercedes-AMG Petronas repudiou acertadamente a linguagem racista de Nelson Piquet, mas daí emendou: "Juntos, compartilhamos a visão de um automobilismo diversificado e inclusivo, e este incidente destaca a importância fundamental de continuar lutando por um futuro melhor" (grifo meu).

A Petronas é a estatal de petróleo e gás que controla todas as reservas da Malásia, onde homossexualidade é crime punido com até 20 anos de prisão.