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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A sociedade do espetáculo vive a eleição como um filme

Colunista do UOL

22/07/2022 04h00

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Ontem ocorreu uma carnificina no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. Se nada é mais importante que a vida humana, este é o assunto que para um país.

Eu gostaria muito de imaginar que a imprensa não deu importância porque é na periferia. Seria uma explicação fácil para o aparente torpor. A mídia é elitista, não noticiou como deveria e, portanto, não tivemos a reação esperada.

Não foi isso. Os meios de comunicação deram destaque absoluto para o fato. Trouxeram as fotos das pessoas chorando carregando corpos dos conhecidos. Mostraram as filmagens de quem passou o dia, mais uma vez, ouvindo tiros de fuzil.

Foram inúmeras as vozes dos formadores de opinião que comentaram o fato, condenaram as mortes, chamaram atenção para a gravidade e tentam entender - como eu, sem sorte - por que não causa comoção.

Talvez tenhamos nos tornado uma sociedade em que a vida não vale nada. Mas não creio que exista uma explicação simples.

O presidente da República não se sente obrigado a comentar vinte mortes violentas de brasileiros. Nem vou entrar nas características pessoais dele. Somos uma sociedade que comemora ter "apenas" 40 mil assassinatos em um ano, não 60 mil, como costumava ocorrer.

Após o pesadelo da pandemia, agravado pela forma como nossas autoridades públicas conduziram a questão, talvez a sensibilidade tenha diminuído ainda mais.

É sintomático que uma tragédia desse tamanho não tenha sido pauta de nenhum outro pré-candidato à presidência da República. Ninguém sentiu necessidade de falar do assunto, se solidarizar com as famílias enlutadas, emitir um posicionamento.

Poucas coisas são mais determinantes para o futuro de um país do que ser uma sociedade acostumada a despertar com o som da carnificina. Só que isso gera menos engajamento que a Luisa Mell.

Cria da sociedade do espetáculo, a ativista da causa animal surfa na onda de um dos maiores sucessos dos podcasts jornalísticos, "A Mulher da Casa Abandonada", trabalho de Chico Felitti para a Folha de S. Paulo.

Já foi duas vezes ao local resgatar animais, fazendo lives no Instagram com milhares de espectadores. A última, em que protagonizou um cabo de guerra com um cão de pequeno porte, mobilizou o nicho dos influencers da justiça social.

Ela chegou lá dizendo que havia denúncias sobre gatos. Aparentemente, eram "gatos" de eletricidade. Saiu com o cachorro e fez uma enquete perguntando se a tal mulher deveria ser perdoada por ter convertido outro ser humano em escravo. Sucesso absoluto de engajamento.

Enquanto isso, o presidente da República se dedicava a explicar o encontro com o irmão do petista assassinado por um bolsonarista na própria festa de aniversário.

Na foto com políticos de seu espectro ideológico, o irmão sorria. O presidente fazia questão de dizer que não tem responsabilidade. É a fórmula mágica de conseguir presidir um país sem ser responsável por nada que acontece.

Jair Bolsonaro não inaugurou o "efeito teflon", mas com certeza é hors concours na matéria.

E nós seguimos rumo a uma eleição para a presidência da República sugados pela economia da atenção. Os assuntos que realmente importam, infelizmente, não geram o mesmo engajamento de tantas outras coisas.

Aquilo que tem qualidade de espetáculo, que nos faz levar a vida tal qual um filme, é o que cataliza as atenções.

Ninguém sabe direito o que se planeja para reconstruir a economia do país, como vamos lidar com a violência e, acima de tudo, como será possível reconstruir o tecido social esgarçado e pisoteado.

Talvez nada disso tenha peso nas próximas eleições. Será, no entanto, central no nosso futuro e no país que vamos construir para as próximas gerações.