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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Militância gourmet confunde campanha com teste de fidelidade

João Kleber ficou pistola com os convidados no "Teste de Fidelidade", em 2005 - Reprodução/RedeTV!
João Kleber ficou pistola com os convidados no 'Teste de Fidelidade', em 2005 Imagem: Reprodução/RedeTV!

Colunista do UOL

25/07/2022 04h00

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Durante muitos anos imaginei com sinceridade que jamais veria uma manifestação espontânea e genuína na política. Felizmente caí do cavalo em 2018 com a performance de Tarcísio Motta, vereador do Rio de Janeiro pelo PSOL e pré-candidato a deputado federal.

O PT teve naquele ano a brilhante ideia de lançar Márcia Tiburi candidata a governadora do Estado do Rio de Janeiro. Num evento de campanha em outubro, ela lança a moda do teste de fidelidade para triagem de votos.

"Vão em frente. Quero ver, no segundo turno, vocês todos que vão votar no Ciro votando em branco e apoiando Bolsonaro", disse Tiburi, ovacionada pela plateia. "Você não pode, gente, usar uma moral agora e outra moral depois", continuou.

A incredulidade que brotava dos olhos de Tarcísio Motta poderia tranquilamente ser engarrafada de tão real que era.

Sempre acreditei que a matemática é uma das coisas com potencial para salvar o Brasil de si mesmo. Eleição é voto. Quem tem mais votos ganha. Parece um raciocínio simples a ideia de não desprezar potenciais votos, ainda mais de um pólo ideológico mais próximo.

Eleição é um exercício de escolha sobre o possível, não sobre o ideal. Há, obviamente, uma parcela para quem os candidatos à presidência são ideais e inquestionáveis. Maldosos os chamam de fanáticos. Eu prefiro o eufemismo paquitas de político.

A maioria, no entanto, escolhe o menos pior. A política brasileira nunca foi um panteão de estadistas e altruístas com visões para o futuro do país. Está mais para um sarapatel de coruja.

Uma vez o ministro aposentado do STF Sepúlveda Pertence me disse que a política é a arte da sobrevivência. Também dizem por aí que é a arte do convencimento. Estão todos certos, é uma mistura.

Fazer política é criar pontes, abrir diálogo, dar saídas honrosas para que o adversário de ontem seja o aliado de hoje e o adversário de hoje seja o aliado de amanhã. Cada voto vale um voto, seja soltando rojão ou tampando o nariz.

Mas isso valeu só até o ponto em que política se tornou um acessório de luxo. A evolução da tecnologia trouxe a militância de redes sociais e um mercado muito interessante.

Hoje é possível ter o charmoso status de revolucionário sem precisar sair de trás do computador e do abrigo do ar condicionado.

Demonizar o adversário de forma sincera e hiperbólica é um tiro no pé no universo político. É algo que impediria, por exemplo, a aliança de Lula com Alckmin ou de Jair Bolsonaro com Valdemar Costa Neto.

Ocorre que esses fazem política, vivem disso, estão com a mão na massa. Imaginar que o adversário seja a encarnação do mal não tem muito valor.

Ocorre que isso é a única coisa que tem a militância gourmet. Como não faz política e, muitas vezes, não faz nada de útil da vida, só lhe resta a idealização do próprio heroísmo.

Imaginar que o adversário seja uma potestade faz essa militância de coisa nenhuma sentir a emoção de combater demônios com corrente de WhatsApp. Carimbar na testa do adversário o rótulo de nazista traz a satisfação de matar o próprio Hitler a tuitadas.

O único problema é que isso é antipolítica. Em vez de criar pontes, queima as que existem e ergue muros. Não vai aumentar o número de votos, a única coisa essencial para chegar ao poder.

Essa militância gourmet é minoritária, mas é influente, barulhenta, passa o dia nas redes sociais por ser desocupada, acaba ganhando cobertura da imprensa.

Sem fazer ou propor rigorosamente nada de concreto, elege um alvo ao dia para escalpelar em praça pública. Não tem nenhuma utilidade política, mas leva o grupo a acreditar que é bom e, acima de tudo, especial.

A lógica da gourmetização e do luxo é excludente. Poucos podem fazer parte do grupo para que ele seja interessante e cobiçado. Na política, é o oposto.

O maior desafio hoje para as forças políticas é como lidar com as forças da antipolítica que se propõem a ajudar candidatos. O apoio moral é inequívoco, mas trabalham fortemente para sabotar potenciais votos favoráveis.

Tanto Jair Bolsonaro quanto Lula já acenaram para divergentes que possam embarcar em suas candidaturas. Mas esse pessoal continua sendo esculachado pela militância gourmet.

A campanha já foi transformada em uma versão do teste de fidelidade. Resta saber se isso terá ou não impacto nas urnas.