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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quem está pronto para decorar a casa de verde e amarelo pela seleção?

Colunista do UOL

07/11/2022 12h42

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Nunca antes na história desse país a gente esteve tão perdido em Copa do Mundo. Nas fases boas e ruins da nossa seleção, o hábito era sempre o mesmo. A gente botava a nossa camisa, enfeitava a casa ou o escritório de verde e amarelo, reunia os amigos.

Hoje, por exemplo, no dia da convocação, já era hora de ter ruas com o chão colorido pelas pinturas com a nossa bandeira, a farra da molecada, a decoração da Copa do Mundo.

Ainda estamos na ressaca eleitoral. Quem está de camisa da seleção e bandeira nas ruas não está nem comemorando nem pensando em futebol. Os que querem comemorar estão na dúvida: se a gente faz tudo como sempre fez, vão pensar que é manifestação política?

Infelizmente vão. O futebol brasileiro tem um poder de pacificação reconhecido no mundo, mas ainda não foi suficiente para pacificar o Brasil após as últimas eleições.

Nosso país é uma estrela das Forças de Paz da ONU. Em 2004, no Haiti, houve uma situação bem interessante. O país vivia uma grave crise política e econômica, 4 em cada 5 pessoas estavam abaixo da linha da pobreza.

Havia três anos de protestos contestando o resultado das eleições de 2001, quando apenas 10% da população foi às urnas. O presidente Jean-Bertrand Aristide renunciou e imediatamente saiu do país. O governo Lula, que queria projeção internacional, decidiu mandar soldados para o processo de pacificação e reconstrução.

Oficialmente, eles eram enviados da ONU pela MINUSTAH, sigla francesa de Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti. Foi algo criado pelo Conselho de Segurança da ONU em setembro de 2004.

Era uma tropa internacional, mas o maior contingente foi de brasileiros. O governo negociou para que tivéssemos liderança . O nomeado de Lula para a condução da tarefa foi ninguém mais nem menos que o general Heleno.

O roteirista do Brasil realmente não tem limites. O mesmo general bolsonarista que ontem disse que Lula "infelizmente" não está doente já foi nomeado pelo próprio Lula para estabelecer a paz em outro país.

Não tem como prever futuro, mas o general havia sido ajudante de ordens do general Sylvio Frota que, em 1977, tentou dar o golpe dentro do golpe militar. Era um grupo que defendia a deposição de Ernesto Geisel e ainda mais endurecimento do regime. Daí saiu nosso primeiro comandante da missão de paz.

Na época, o primeiro-ministro interino do Haiti, não levava muito a sério a ideia de pacificação interna por tropas estrangeiras. Gerard Latortue disse à imprensa que o Brasil ajudaria mais seu país se, em vez de mandar soldados, mandasse a seleção brasileira de futebol.

Em entrevista à BBC, esclareceu que não era deboche, era sério, uma questão de impacto mental sobre um povo que não via algo tão espetacular há muitos anos. "Alguns poucos jogadores brasileiros poderiam fazer mais para desarmar as milícias do que milhares de soldados das forças de paz", declarou.

A CBF resolveu mandar mesmo os jogadores. Um público de 15 mil pessoas viu a partida entre a seleção do Brasil e a do Haiti em Porto Príncipe em 18 de agosto de 2004. Foi o "Jogo da Paz", que marcou o início da campanha do desarmamento. Haitianos podiam trocar armas pelo ingresso e fizeram isso.

O primeiro ato dos nossos soldados da MINUSTAH em solo haitiano foi a distribuição de mil bolas de futebol. Casa de ferreiro, espeto de pau. Nossa seleção não está sendo suficiente para pacificar por aqui uma situação muito menos complicada que a do Haiti.

Durante muitos anos cometemos o erro de relacionar à ditadura militar tudo o que tem a ver com patriotismo e civismo. Cantar o hino, usar as cores do Brasil e gostar da nossa bandeira eram como uma lembrança de um período nefasto.

Apareceu uma força política que resgatou esses símbolos e levou a reboque o único que não tinha ranço de ditadura, a camisa da seleção. O bolsonarismo se colocou como "dono" dos símbolos pátrios e só conseguiu porque eles estavam mesmo abandonados.

Agora nossa tarefa é como recuperar a camisa da seleção, nossos rituais da Copa do Mundo e torcer de forma despreocupada e feliz. Já fizemos isso por outros povos, não sabemos ainda é como fazer por nós.