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Madeleine Lacsko

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Trio de mulheres na arbitragem da Copa do Qatar é feminismo que homem gosta

Árbitra Stephanie Frappart segura a bola durante Costa Rica x Alemanha, jogo da Copa do Mundo - Mustafa Yalcin/Anadolu Agency via Getty Images
Árbitra Stephanie Frappart segura a bola durante Costa Rica x Alemanha, jogo da Copa do Mundo Imagem: Mustafa Yalcin/Anadolu Agency via Getty Images

Colunista do UOL

01/12/2022 17h20

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É um deboche a Fifa escalar um trio de arbitragem feminino justo na Copa do Qatar. Mas é bem o espírito da macholândia da entidade, que tem longa ficha corrida de passar pano para assédio sexual. Finge que mudam alguma coisa para não ter de mudar nada.

Pessoalmente, eu parabenizo as profissionais e fico feliz por elas. Considero acertada a postura de aceitar a tarefa e não questionar publicamente as violações sistemáticas de direitos femininos nem pelo Qatar nem pela entidade. Se elas fossem esperar consertar isso para evoluir profissionalmente, não iriam evoluir. Abrindo a porta, começam a construir uma história com outras mulheres que virão depois.

É, sem dúvida, um sinal importante de possível abertura de espaço para as mulheres que trabalham na área de arbitragem esportiva como um todo, não apenas em futebol. A visibilidade do evento de hoje e o tanto que ele será discutido tende a, pouco a pouco, ajudar a eliminar barreiras que herdamos de outros tempos.

O engano está em colocar como avanço feminista este evento específico. Pior ainda, dar crédito à Fifa pelo feito.

Poder não se dá, se toma. E este foi visivelmente cedido a contragosto e sob medida para alimentar a militância privatizada de rede social, os Che Guevara de apartamento.

Caso o evento significasse realmente um avanço efetivo para os direitos das mulheres, o Qatar não permitiria. Lá, mulheres não têm o mesmo status de seres humanos e muito menos os mesmos direitos civis que os homens. Não parece que tenham a menor intenção de promover mudanças nesse sentido.

No entanto, o país está ficando craque no "sportswashing". A Fifa, uma organização tradicionalmente e primordialimente masculina, também sabe direitinho como navegar nessas águas.

O evento simbólico vai inevitavelmente trazer os clichês preferidos de quem finge militar pelo feminismo, mas trabalha arduamente com sinalização de virtude. Teremos de ouvir homens queridos parabenizando as mulheres por finalmente conquistar esse espaço, alegando que era impensável em pleno 2022 que ainda não estivessem aí.

Vão esperar que nós, mulheres, passemos a comemorar a ironia da Fifa escolher justamente o Qatar para a peripécia e bem no ano do escândalo sexual com mulheres na arbitragem.

Pouco antes da Copa, em setembro, a Fifa suspendeu Obert Zhoya, ex-secretário-geral da Comissão de Árbitros da Federação de Futebol do Zimbábue (ZIFA) por assédio sexual contra três árbitras de seu país.

O escândalo estourou em janeiro e o silêncio da entidade diante das denúncias que se acumulavam desde 2019 e estouraram em janeiro deste ano. Foram ironicamente nove meses de silêncio até o parto de uma suspensão e multa.

Nós, aqui no Brasil, também temos a nossa dose de experiência do respeito da Fifa às mulheres, com o caso Rogério Caboclo. Passando uma imagem de "botar ordem na casa", acabou exposto no Fantástico com uma gravação em que perguntava a uma funcionária se ela se masturbava.

Imaginar que o primeiro trio de arbitragem exclusivamente feminino vai ser um ponto de virada nessa história é ilusão. Pode não passar de uma tentativa de ajuste de imagem depois que ficou claro o problema na cultura interna da entidade.

Além disso, é mais uma tentativa de empurrar goela abaixo das mulheres que devemos nos contentar com posições às quais chegamos pelas mãos dos homens enquanto somos obrigadas a engolir uma tonelada de sapos diariamente.

Isso é algo muito diferente da igualdade de oportunidades, que exige muita luta das mulheres e encontrará resistência e cinismo a cada passo do caminho.

Essa luta depende de ações cotidianas que raramente servirão para lacrar em redes sociais. Quem não quer mudar o status quo conta com a era da economia da atenção para tentar mostrar que muda as coisas sem ter de mudar nada estruturalmente.

O trio de arbitragem feminino não é um avanço da Fifa nem do Qatar, é uma conquista dessas mulheres e de tantas outras que trilharam um caminho ainda em construção. Ainda não é uma conquista de todas as mulheres.

Estamos no primeiro passo, o do feminismo que homem gosta, aquele em que homens são os "gatekeepers" das nossas conquistas.