Não é a casa da Mãe Joana: apps de mototáxi lucram, nós enterramos jovens

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Em 2012, o governo federal tentou regulamentar o moto frete. Que fique claro, eu disse moto frete —ou seja, o transporte de carga por motocicleta. A exigência era que o motorista tivesse 30 horas de treinamento, usasse joelheira, capacete e até um tipo de air bag corporal. Tudo isso para carregar uma carga, uma encomenda qualquer. Nem se falava ainda de mototáxi. As regras entraram por um ouvido, saíram pelo outro.
Ninguém deu bola para a proposta governamental e hoje os motociclistas andam por aí entregando pedidos, sabemos como: no zig-zag do trânsito, costurando no meio dos carros, buzinando entre espelhos retrovisores ou até mesmo escapando do congestionamento pela contramão.
Agora a situação piorou.
Gente não é pacote, nem se pode carregar em uma sacola. Gente sangra, se machuca, perde membros, fica tetraplégica, morre.
Só nos primeiros 3 meses deste ano, 208 pessoas foram vítimas fatais no trânsito de São Paulo; 47% em cima de uma moto. Dá para enfileirar estatísticas desagradáveis. Corpos, não.
Quem não morre passa longas temporadas em hospitais. Os acidentados em motocicletas chegam nos prontos-socorros mais machucados, em estado mais grave. Ficam internados mais tempo. Em 2024, só na rede municipal de saúde, os acidentados ocuparam 18 mil leitos/dia de permanência hospitalar. No Estado, foram 27 mil leitos/dia.
Não é fatalidade apenas. É matemática.
Não obstante esses argumentos assombrosos, tem quem ache que pode colocar mais gente por dia sobre uma moto. Tem quem ache que nos balanços anuais das empresas, o número de mortes não mancha a linha do lucro. E toma um liberou geral. Só aceitável na Casa da Mãe Joana, com o perdão da expressão. É que, enquanto eu escrevo, vai me dando raiva.
Eles lucram, nós enterramos jovens.
Mas os gringos querem falar de dinheiro. Ok, falemos de grana.
No ano passado, os acidentes com motos significaram R$ 2 bilhões em despesas do SUS, segundo números do próprio Ministério da Saúde.
Cada vítima que se torna um paciente hospitalar custa, em média, R$ 80 mil para os cofres públicos, por internação, dado o longo tempo que ficam no hospital e em UTIs.
Sem falar em tratamentos públicos posteriores, como psicológico ou fisioterapia, para a implantação de uma prótese ou recuperação de um tetraplégico. Sem falar no prejuízo dos pacientes que aguardam por meses ou anos uma cirurgia e são preteridos para o atendimento ao motoqueiro que chegou semimorto na última hora na ambulância.
E ainda querem colocar mais vidas sobre as motos?!
Há especialistas —e eu assisti várias entrevistas deles nos últimos dias— que defendem a regulamentação do mototáxi, desde que opere apenas fora do centro expandido da cidade.
O argumento é que, nessas regiões periféricas, corridas curtas poderiam ajudar a chegar no ponto de ônibus ou estação de metrô mais próximos. Pode ser. Falhas no nosso sistema de transporte público não faltam.
Mas isso não significa que o asfalto da periferia seja mais macio, menos mortal; não significa que quem pilota a moto por lá seja mais cuidadoso. O motociclista da avenida 23 de Maio é o mesmo que circula nas ruas internas de Ermelino Matarazzo. Aliás, ele até pode morar lá.
E esse motorista não tem treinamento para uma direção defensiva com um garupa nas costas. Aliás, esse garupa sabe fazer o movimento de corpo para ajudar em uma curva? O que o passageiro não deve fazer ao montar na moto? Quem vai ensinar?
A autoescola é cara, é para poucos. No Brasil —prestem atenção neste número—, 53% dos proprietários de moto não têm habilitação.
Inacreditável! O número em São Paulo, apesar de ser melhor, ainda é assustador. Um em cada 4 proprietários de motos não tem carta.
Ah, mas você não está considerando a questão social e o número de empregos que essa atividade de mototáxi vai gerar.
Pode parar.
Respeito o argumento. Mas o que pode ser uma justificativa mais forte do que viver?
A Justiça agora colocou uma vírgula na história toda. Não um ponto final. Apenas uma vírgula. Proibiu a atividade provisoriamente —apenas provisoriamente— e sugeriu que a prefeitura regulamente o trabalho dos mototaxistas.
Fácil, né?
Vamos ficar apenas com uma das dificuldades: o uso do capacete. Ele seria de tamanho grande (sobrando em cabeças pequenas) ou pequeno (sem poder ser usado pelas cabeças grandes)? Dois não dá para oferecer. E a higiene desse mesmo capacete? Quem cuida disso? E mais: qual a origem do capacete? Ele tem selo do Inmetro? Quem vai fiscalizar? A CET? Kkkkkkkkkkk
Sem piada. O assunto não merece. Não estou para brincadeira.
Nem quem mandou pendurar aquela faixa na avenida Tiradentes, em São Paulo: "A CET registrou neste local a morte de uma passageira que usava o serviço de mototáxi da empresa 99. O serviço de mototáxi é Proibido - Preserve sua vida".
É verdade que o acidente em questão teve também outras motivações. Dois passageiros embriagados de um carro de aplicativo abriram repentinamente a porta bem no momento em que a moto em que viajava de carona a jovem Larissa Barros, de 22 anos, passava. Ela morreu no local.
Pior é que já vimos este filme. Filme em que os inocentes morrem no final. Em outras paisagens, mas já vimos. Em Salvador, por exemplo, onde o mototáxi foi autorizado no ano passado.
Em 2023, ainda com o transporte de passageiros por moto proibido, os sinistros com esse veículo cresceram 45%. Repito: ainda sem transporte de passageiros nas motos. Portanto, só com transporte de carga.
Em 2024, com a autorização para transporte de pessoas, os sinistros subiram 84% de um ano para o outro!
Todas essas informações estão disponíveis para os vereadores na Câmara Municipal de São Paulo. Há até uma Subcomissão e Estudos recebendo informações e ouvindo especialistas. O resultado será talvez até uma proposta de regulamentação.
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