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Opinião

O que ninguém conta sobre a desapropriação do Jockey

O momento crucial teria acontecido em uma reunião realizada em 2018, na sala do então presidente da Câmara Municipal, Milton Leite. Além do próprio, estavam presentes o ex-prefeito João Doria, o então colega de partido e já ex-governador de Goiás Marconi Perillo, além de secretários municipais e vereadores.

Após a publicação desse texto, o Jockey Club de São Paulo e Marconi Perillo entraram em contato com o UOL e negaram que a existência da reunião citada. Leia o posicionamento clicando aqui.

Refestelados em sofás no oitavo andar do Palácio Anchieta, a conversa ia bem. Afagos, piadas e um assunto bilionário em pauta: o futuro daquela área nobre do bairro de Cidade Jardim, onde está o único hipódromo paulistano, com um dos metros quadrados mais caros de São Paulo.

Ao que parecia, haveria acordo, e o problema da dívida do Jóquei, já naquela época na casa das centenas de milhões de reais, com a prefeitura, seria resolvido.

Mas em meio ao clima ameno, quando se entrou no tema principal, em determinado momento, o goiano, falando com a autoridade de um ex-governador e ex-senador da República, teria dado uma carteirada no vereador Milton Leite, para forçar que o projeto de lei que colocaria um ponto final à pendenga fosse votado - e rapidamente.

Milton Leite não passou recibo no mesmo instante. Riu, disse que sim e continuou simpático. Mas logo após se despedir efusivamente do ex-governador, teria dado um tapinha nas costas de um assessor que estava próximo e dito: "Agora que essa coisa não sai, nem f...".

A reunião foi confirmada por duas pessoas que estavam presentes. O ex-governador Perillo, hoje conselheiro do Jóquei, nega veementemente. Mas que ela parece verossímil, principalmente para quem conhece o eterno presidente da Câmara de São Paulo, parece.

Perillo, com quem conversei antes da publicação desta coluna, só confirma uma outra reunião, cerca de dois anos depois, quando Doria já era governador. Dela, teriam participado, além dos dois, outros pesos-pesados: o vice Rodrigo Garcia, o ex-prefeito Bruno Covas e o próprio Benjamin Steinbruch, presidente do Jóquei.

O fato é que, mesmo com essas conversas, o projeto ficou empacado e nunca foi prioridade na pauta de votações da Câmara.

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Melhor dizendo, alguns vereadores até se interessaram bastante pelo assunto; estiveram várias vezes em conversas com o Jóquei. Mas sobre esses encontros, ninguém se arrisca a dar detalhes. Pelo jeito, as conversas não foram boas.

Mas afinal, qual era o projeto em questão, que interessava tanto Marconi Perillo e Steinbruch?

Era o PIU Jóquei. O Plano de Intervenção Urbana, que previa uma mudança radical da paisagem do local. Os PIUs são projetos destinados a promover a reestruturação urbana em áreas subutilizadas e com potencial de transformação da região. Era exatamente o caso do Jóquei. Ainda é.

O plano propunha a alteração do zoneamento para a verticalização da área na ponta sul do terreno oval, onde hoje está o estacionamento e um pequeno bosque de árvores exóticas. Ali seriam construídos apartamentos ou escritórios de alto padrão e talvez até um hotel. Um outro investidor também queria quadras de tênis e uma arena moderna, próxima à arquibancada, para competições de padrão internacional. Com o dinheiro arrecadado, o Jóquei pagaria a dívida de IPTU com a prefeitura e a construtora seria responsável por viabilizar um parque privado, com acesso público, na área das pistas. As corridas de cavalo poderiam continuar, em dias e horários específicos.

A parte das arquibancadas, tombada, não seria mexida, apenas recuperada. E a área das baias e casas de funcionários e jóqueis se tornaria um shopping a céu aberto, ideal para lojas de luxo, cafés, livrarias e restaurantes, além de um centro cultural.

Era um jogo de ganha-ganha, que uma frase mal encaixada durante uma reunião teria colocado tudo a perder. Ganhava a prefeitura, que receberia o valor devido; ganhavam os empresários do mercado imobiliário, com boas oportunidades de investimentos; ganhava a população, com um novo parque e um novo shopping; ganhava o Jóquei, com a quitação da dívida e a manutenção do turfe e das apostas.

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Quis a política, no entanto, que o caminho fosse outro. Não necessariamente pior, nem melhor. Mas melhor, com certeza, do que está agora.

Quem passa pela avenida Lineu de Paula Machado vê os muros úmidos e manchados do Hipódromo, que sem pintura vão se deteriorar com o tempo. O outrora centro de reuniões da elite paulistana, com homens de terno e gravata e mulheres de chapéu e vestidos longos, hoje está decadente, quase abandonado, apesar de algumas obras de restauro que foram promovidas nos últimos anos.

Para manter aquela imensidão na Cidade Jardim e pagar os funcionários, o clube recebe, em mensalidades, apenas pouco mais de R$ 400 mil por mês. Há quem diga que o Jóquei hoje não tenha nem 400 sócios.

Resultado: dívidas sobre dívidas. E com juros sobre juros. Só de processos trabalhistas são mais de 30.

Uma fonte faz um cálculo que o total dessa dívida hoje passe de um bilhão de reais, sendo R$ 145 milhões com o governo federal e o governo do estado e outros R$ 830 milhões com a prefeitura. Os valores são contestados judicialmente pelo Jóquei. Para se ter uma ideia, na época daquela reunião do início deste texto, a dívida não chegava à metade deste valor.

Para diminuir - porque quitar seria praticamente impossível - os débitos com a municipalidade, o Jóquei optou por um plano de parcelamento da dívida, com a concordância da prefeitura, que seria paga em 10 anos, com redução de multas e juros. Para fazer a adesão, o pressuposto era que o Jóquei confessasse a dívida e não atrasasse prestações por mais de 90 dias. Não deu outra: atrasou. A confissão também veio, e atrapalha juridicamente o Jóquei até hoje nas ações que correm na Justiça. Nelas também se discute o valor do terreno.

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Enquanto isso, o Jóquei continua - vejam que contradição - recebendo dinheiro da Prefeitura. Está na lei. Como tem áreas tombadas pelo Patrimônio Histórico, o clube tem direito a verbas públicas que ajudem na manutenção dessas construções. Acreditem ou não, foram R$ 64 milhões de reais entre 2018 e 2024. Se o dinheiro foi ou não aplicado naquilo que prevê a legislação, pouca gente sabe. É o Departamento de Patrimônio Histórico da Prefeitura, responsável pela fiscalização, que tem que responder.

Da inadimplência do Jóquei para frente, começa uma nova história, mais uma vez com contornos políticos.

Comandado por um homem poderoso, o empresário Benjamin Steinbruch, e ainda contando com a parceria especial de Marconi Perillo, o Jóquei, mesmo quebrado, continuou falando grosso. Foram várias reuniões na prefeitura, já na gestão do prefeito Ricardo Nunes. Sem acordo.

Com os vereadores, também houve novas conversas. E logo veio um projeto de lei, de autoria do vereador Xexéu Trípoli, para colocar o bode - ou a égua - na sala: proibir a utilização de animais em atividades esportivas com apostas. E mais: na revisão do Plano Diretor, em 2024, de novo na Câmara Municipal, o zoneamento do Hipódromo é alterado para uma Zepam, ou Zona Especial de Proteção Ambiental, ou seja, uma área com vegetação nativa e que só pode ter um destino: se tornar parque. Tem até nome: Parque João Carlos Di Gênio, o empresário que foi dono do Colégio e Faculdade Objetivo.

O que pouca gente foi pesquisar é que o zoneamento também mudou no entorno do Jóquei, em uma das pontas, do mesmo lado que o clube queria ver prédios construídos, mas do lado de fora, na vizinhança, que vai ganhar construções bem altas. Do lado do estacionamento, os imóveis da rua Dr. José Augusto de Queiroz, já estão sendo assediados pelas construtoras. Há quem diga que muitos deles já foram até vendidos - e por preços ínfimos, comparados ao que vão valer em breve. Nesses quarteirões, que vão até a avenida dos Tajurás, a construção de grandes prédios está agora autorizada pela nova legislação.

Tivemos acesso a documentos, supertécnicos, que falam em edifícios de, no máximo, 10 andares. Mas há outros que traduzem o emaranhado de números e letras do zoneamento para uma autorização ainda mais liberal no local. Quem comprou imóvel ali ganhou dinheiro, porque os apartamentos ou escritórios terão uma das vistas mais lindas da cidade, e o metro quadrado disparou, podendo atingir os mesmos valores do que o dos imóveis ao lado do Parque Ibirapuera. Dificilmente esses imóveis estarão registrados em nome de todos os verdadeiros compradores dos imóveis. Tem gente que vai ganhar muito dinheiro ali. Eles vão se dar bem.

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O parque vai sair. A prefeitura espera apenas uma última decisão do STJ, onde estão sendo discutidas várias ações sobre o assunto, para publicar uma DUP, um documento de desapropriação da área total do Jóquei.

Independentemente dos interesses envolvidos, o projeto, que está sendo concebido pela prefeitura é ótimo.

Haverá integração com o Parque Bruno Covas e, por este, com o Parque do Povo e o Villa Lobos, por meio de uma passarela para pedestres e bicicletas, que vai cruzar a marginal Pinheiros até o outro lado, passando sobre o rio Pinheiros. Também há a previsão da queda dos muros que circundam todo o hipódromo e a colocação de grades. Haveria quadras poliesportivas e de areia. Há até uma previsão de um lago. As pistas seriam usadas para corridas a pé e caminhadas. Cavalos, apenas para equoterapia.

O novo parque seria concedido. Não seria uma PPP. Ou seja, o investimento pode ser 100% privado.

E assim São Paulo deixaria de ter o seu hipódromo. "Não, não é hipódromo. São Paulo acabaria com o que tem lá hoje: apenas um clube do charuto", conclui uma fonte.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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