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Marco Antonio Villa

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Basta de coronelismo evangélico

O presidente da República, Jair Bolsonaro, participa da Marcha para Jesus, principal encontro evangélico do país, no palco montado na Praça Heróis da Força Expedicionária Brasileira (FEB), na zona norte de São Paulo. Esta é a primeira aparição de um presidente da República na Marcha para Jesus, que ocorre em São Paulo há 27 anos - Jales Valquer/Framephoto/Framephoto/Estadão Conteúdo
O presidente da República, Jair Bolsonaro, participa da Marcha para Jesus, principal encontro evangélico do país, no palco montado na Praça Heróis da Força Expedicionária Brasileira (FEB), na zona norte de São Paulo. Esta é a primeira aparição de um presidente da República na Marcha para Jesus, que ocorre em São Paulo há 27 anos Imagem: Jales Valquer/Framephoto/Framephoto/Estadão Conteúdo

Colunista do UOL

29/03/2022 10h40

O coronelismo é uma marca da república brasileira. No clássico "Coronelismo, Enxada e Voto" de Victor Nunes Leal foi apresentado o funcionamento desta forma de dominação e expropriação do voto do eleitor. Era ainda um Brasil rural em que as cidades tinham menos expressão eleitoral do que as zonas rurais.

O processo de deslocamento campo-cidade e, mais ainda, a vinda de centenas de milhares de nordestinos para o Rio de Janeiro e, principalmente, para São Paulo no pós-Segunda Guerra —foi o maior deslocamento populacional nas Américas naquele período— rompeu com este sistema de dominação. O sertanejo passou de um instrumento que só tinha vida no momento da eleição e para sufragar o escolhido pelo coronel, para um cidadão que podia escolher livremente em quem iria votar. Vale ressaltar que dois documentos eram fundamentais para a obtenção de um emprego nas áreas industriais: a carteira profissional e o título de eleitor.

A democracia de massas marcou os anos 1945-1964. Mesmo nos anos da ditadura militar, o eleitorado urbano deu mostras de independência. Basta recordar a grande vitória do MDB para as eleições para o Senado em 1974 quando, de 22 estados, o partido oposicionista venceu em 16, e a Arena em apenas seis —recordando que no Maranhão o MDB não conseguiu nem sequer apresentar um candidato ao Senado.

A redemocratização encontrou um país com enorme desejo de participação. As eleições eram uma festa. Não faltavam candidatos com propostas, ideias, programas, projetos. Votar se transformou em momento de afirmação da cidadania. Era o momento da elaboração da Constituição cidadã, feliz definição de Ulysses Guimarães.

Concomitante a este processo, foram se expandindo rapidamente as regiões metropolitanas. Novas demandas sociais e econômicas foram apresentadas, mas sem que obtivessem as devidas respostas. Milhões de brasileiros foram excluídos, apartados dos resultados de momentos eventuais de crescimento econômico. Os serviços de Estado, a cada dia, demonstraram sua ineficiência nos campos da segurança pública, educação, saúde, habitação, saneamento básico. A última década pode sintetizar este processo de desesperança econômica e de falta de perspectiva. Nada indicava que o futuro seria melhor do que o presente, que os filhos viveriam melhor do que os pais, como nos anos 1930-1980, quando o Brasil foi o país que mais cresceu no mundo ocidental.

Numa intersecção com este processo, os evangélicos foram ocupando espaços onde o Estado estava ausente. E transformaram suas igrejas em partidos políticos. O sagrado se transformou em linguagem profana, política. As contradições sociais e econômicas, as injustiças tão presentes no Brasil, acabaram sendo justificadas e aceitas. Foi estabelecida uma Teologia da Libertação às avessas.

Os partidos políticos a cada eleição —e temos pleitos de dois em dois anos— acabaram se submetendo à lógica dos pastores. Isto porque nas últimas décadas surgiram centenas de igrejas evangélicas —algumas com forte presença internacional— com milhões de adeptos. Uma delas tem até um partido político para chamar de seu.

O chefe partidário considera que o pastor é o novo coronel, só que agora urbano. Assim, para alcançar o eleitor tem nele o elemento de mediação. Vai à igreja e publicamente pede apoio do pastor. Isto dá a ele —o pastor, entenda-se— uma legitimidade ainda maior frente ao seu "rebanho". Não se importa que está legitimando uma prática nociva à democracia, como também ferindo a Constituição e mais: transformando o evangélico em uma espécie de moderno Jeca Tatu.

Romper o coronelismo evangélico é hoje uma tarefa de sobrevivência para a democracia brasileira. Os partidos têm de buscar o eleitor evangélico sem passar pelo controle dos novos senhores do baraço e do cutelo. Defender o Estado laico está se transformando quase em uma ação subversiva, por mais estranho que pareça. O governo Bolsonaro já demonstrou quão nociva é a relação fanatismo religioso-política. É necessário urgentemente dar um basta a tudo isso.