Topo

Maria Carolina Trevisan

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Inação diante do linchamento público de Moïse remete à escravidão no Brasil

O jovem congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, linchado até a morte na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro - Reprodução/Facebook
O jovem congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, linchado até a morte na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro Imagem: Reprodução/Facebook

Colunista do UOL

02/02/2022 11h30

A morte brutal do jovem congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, de 24 anos, expõe pelo menos três dimensões sobrepostas que caracterizam a sociedade brasileira: o racismo, a xenofobia e o preconceito social. Seu linchamento público em um bairro de classe média e classe média alta do Rio de Janeiro — sem que ninguém tentasse parar aquela violência — diz muito sobre quem somos nós. Evidencia que nunca curamos os efeitos da escravidão, que nos estruturam enquanto sociedade.

"O linchamento tem uma característica que é o compartilhamento social mais abrangente: tem as pessoas que matam e as pessoas que assistem, que estão no entorno. Esse é um elemento muito importante e pode ser conectado com a experiência da escravidão no sentido desse algo público, desse corpo negro sendo exposto publicamente, violentado, a cena pública como a paisagem de violência sistemática", explica a socióloga Flavia Mateus Rios, professora da Universidade Federal Fluminense e pesquisadora do Núcleo Afro do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

"Esse linchamento público é a dimensão do racismo estrutural do país, herança do colonialismo, de um pelourinho vivo, de uma consistência permanente de violência e violações contra corpos negros."

Ao longo da história, o Estado brasileiro tentou se eximir da reparação necessária à nossa população negra. Negou e nega as consequências nefastas do período escravocrata sem garantir dignidade e direitos à população negra e promove até hoje políticas que de alguma forma retomam a elementos da escravidão e a sua violência. O Brasil promoveu uma falsa abolição, incentivou o embranquecimento da população com políticas de miscigenação racial (1888-1920), criou o mito da democracia racial com a noção de que o Brasil é um país cordial e amigável e até hoje normaliza a violência policial, embasada numa "guerra às drogas", que mata pessoas negras.

Essa manutenção oficial e deliberada das desigualdades raciais é racismo.

No livro "O massacre dos libertos" (Editora Perspectiva), obra mais recente do sociólogo Matheus Gato, professor da Unicamp e pesquisador do Núcleo Afro do Cebrap, é possível compreender como se deu a invenção simbólica de uma "fraternidade racial" sustentada na ideia da Abolição, mas que na realidade difundia a esperança de liberdade sem, contudo, oferecer meios básicos de sobrevivência. Essa condição obrigava os libertos e ex-escravos a se submeterem aos brancos.

Matheus fez uma pesquisa rigorosa sobre o massacre de 17 de novembro de 1889, a maneira como os fatos foram contados e os seus simbolismos. Na ocasião, em São Luiz (MA), o exército avançou sobre um protesto negro e matou dezenas de pessoas, em um evento que articulou a abolição da escravatura e a proclamação da República. "O Massacre de 17 de Novembro é um acontecimento-chave para entender o estabelecimento de um contexto de clivagem racial de direitos que se consolida no pós-abolição. Trata-se de um marco na formação de uma cidadania negra no Brasil; não por constituir um fato historicamente extraordinário, como foi considerado por vários dos seus cronistas, mas porque dá a ver aquelas práticas, sentimentos, atitudes e valores que fizeram da raça uma fronteira econômica, política e imaginária entre grupos sociais na formação do Brasil moderno", explica, em um trecho do livro.

A xenofobia associada ao racismo contra imigrantes e refugiados africanos e latinoamericanos (como os haitianos) tem origem nessa formação do Brasil, o país que teve a mais longa e numerosa escravidão do mundo. São pessoas ainda invisíveis. Tão invisíveis a ponto de um jovem negro congolês ser espancado na calçada e ninguém tomar atitude para cessar a violência.

Moïse chegou ao Brasil aos 11 anos em busca da esperança de uma vida livre e digna. Como a gente explica para as crianças a barbárie que é a sua morte? Como falar com as crianças negras sobre esse menino, que se tornou um jovem trabalhador e foi linchado até a morte e sobre os riscos que elas correm por serem negras no Brasil? É dolorido demais. Mas não pode ser uma responsabilidade solitária das famílias negras. Precisamos falar e cobrar coletivamente as instâncias da Justiça, exigir políticas de igualdade racial e reparação e o acesso a direitos.

"Ai, Brasil", lamentou, chorando, um parente de Moïse em protesto com outros congoleses. "Ele trabalhava", disse. O trabalho e a liberdade são valores muito importantes ao povo congolês. Patrice Lumumba, um importante político do Congo, líder panafricanista que lutou pela libertação do país, disse: "mostraremos ao mundo o que pode fazer o homem negro quando trabalha em liberdade, e faremos do Congo o centro de iluminação de toda a África". Ele foi assassinado em 1961, depois de um golpe, pelos governos da Bélgica e dos Estados Unidos. A família de Moïse fugiu dos conflitos que ainda envolveu o país.

A violência racial não pode ser parte da nossa paisagem. O compromisso é de todos nós. Ser antirracista é assumir essa responsabilidade em conjunto. Movimentos negros brasileiros planejam para o próximo sábado (5) manifestações pelo país.

*A jornalista Maria Carolina Trevisan é membro do Núcleo Afro do Cebrap, de pesquisadores que estudam as questões raciais e gênero.