Mariana Sanches

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Reportagem

'Ataque aéreo não derruba regime no Irã, só tropas dos EUA', diz ex-FBI

Em um intervalo de apenas 48 horas, o presidente americano Donald Trump foi de ataques diretos ao território iraniano ao anúncio de um cessar-fogo entre EUA, Israel e o Irã. Em que pese a aparente instabilidade da trégua, o arranjo ainda parece mais promissor do que a outra sugestão feita por Trump 24 horas antes: a da mudança de regime no país persa.

Se quisesse realmente ir em frente com a ideia de derrubada da atual República Islâmica, Trump precisaria estar disposto a enviar milhares de soldados para uma invasão por terra que poderia levar até seis meses para alcançar e dominar a capital iraniana Teerã. Teria ainda de bancar a alta probabilidade de que o Irã descambasse para o colapso e o caos.

Esta é a avaliação de Javed Ali, ex-agente do FBI, ex-membro do Conselho de Segurança Nacional no primeiro governo Trump e atualmente professor de contraterrorismo na Universidade de Michigan. Ali atuou em Washington por mais de 20 anos com assuntos de inteligência americana, em conflitos como a guerra do Iraque.

Embora o governo israelense de Benjamin Netanyahu e o vice-presidente americano J.D. Vance neguem que o atual conflito no Irã tivesse por objetivo a derrubada do governo dos aiatolás, que comanda o país desde os anos 1970, Trump sugeriu que isso estaria, sim, entre suas metas.

Um dia depois de atacar três instalações nucleares em território iraniano, anteontem, Trump postou o seguinte em sua rede social Truth Social:

"Não é politicamente correto usar o termo 'mudança de regime'. Mas se o atual regime iraniano não consegue TORNAR O IRÃ GRANDE NOVAMENTE, por que não haveria uma mudança de regime???", questionou, usando maiúsculas.

O republicano finalizou o post com uma adaptação ao Irã de sua famosa sigla de campanha MAGA (acrônimo de "Make America Great Again", ou Torne os EUA Grandes de Novo): "MIGA!!!"

Irã não é Iraque

"A probabilidade de mudança de regime é muito baixa. Isso não significa que o regime iraniano não seja impopular; claramente é. Com o passar das décadas, ficou claro que o país não está unificado em relação ao apoio à República Islâmica", afirmou Javed Ali ao UOL. "Mas, ao mesmo tempo, não parece haver nenhuma possibilidade de revolução popular, nem mesmo um governo minoritário ou uma coalizão paralelos que pudessem intervir imediatamente e chegar ao poder", complementa Ali.

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Ele compara a situação iraniana ao que aconteceu no Iraque, em 2003, quando os EUA invadiram o país e derrubaram o líder autoritário iraquiano Saddam Hussein. "Embora se fale em mudança de regime, o Irã não é governado por uma única pessoa, mas por todo um sistema ao redor do líder supremo. Não é uma Coreia do Norte, nem mesmo um Iraque sob Saddam Hussein", diz Ali.

O governo iraniano não é uma ditadura clássica. É uma teocracia presidencialista: o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, apontado por um grupo de clérigos xiitas (Conselho de Especialistas), é responsável por políticas de Estado e por supervisionar as ações do presidente, chefe de governo, e do parlamento, ambos democraticamente eleitos. Há ainda o Conselho de Guardiões, que supervisiona aplicações de leis pelos tribunais de justiça do país, parcialmente escolhido pelo aiatolá. E a Guarda Revolucionária, o braço político das Forças Armadas, sob direção dos clérigos.

"Não estou sugerindo que o regime iraniano não tenha desafios, ele tem e é brutal. Mas mesmo que o líder supremo fosse morto em um ataque aéreo, o regime islâmico não entraria em colapso. Eles escolheriam um substituto e pronto", afirma Ali. Trump tem dito que sabe onde Khamenei está escondido e que poderia optar por eliminá-lo. Para Ali, o possível assassinato do aiatolá seria sem efeito em termos de mudanças políticas para o país. "Em caso de morte do Khamenei, também não vejo (a possibilidade do surgimento de) uma revolução popular como a que você teve em 1979, que derrubou o xá Reza Pahlevi, um líder pró-Ocidente, e introduziu uma forma de governança completamente diferente, de clérigos xiitas anti-Ocidente, em um giro de 180 graus", avalia Ali, rememorando os acontecimentos da Revolução Islâmica.

Nesse caso, a única maneira de derrubar o governo dos aiatolás, segundo Ali, seria repetindo a fórmula usada no Afeganistão, em 2002, e no Iraque, em 2003: bombardeios aéreos e ocupação terrestre com coalizões de tropas ocidentais. No primeiro caso, foram cerca de dois meses até a queda dos Talebãs. No segundo caso, cinco semanas até o fim do regime de Saddam Hussein.

"Para uma mudança de regime, teríamos que mobilizar um enorme esforço militar dos EUA e de seus aliados: centenas de milhares de soldados teriam que se deslocar para diferentes partes do Oriente Médio e, entre três e seis meses, precisaríamos ter colunas blindadas avançando sobre o centro de Teerã", diz Ali, citando que no caso iraquiano, os EUA partiram do Kuwait e da Arábia Saudita e questionando qual seria a base terrestre de onde os soldados americanos poderiam partir para invadir o Irã.

"No caso iraniano, seria preciso atravessar desertos e montanhas, em uma logística infinitamente mais complexa. Uma invasão ao Irã seria muito mais difícil do que o que foi feito no Iraque", diz Ali.

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O dia seguinte à queda do regime

Mas ainda que todas as complexidades da operação militar fossem superadas e os americanos conseguissem tomar o controle de Teerã, ainda haveria mais um problema: o dia seguinte à queda.

A experiência dos americanos tanto no Iraque quanto no Afeganistão mostra que a tentativa de construir um novo governo, baseado em instituições democráticas, se mostrou cara e falha. No caso do Iraque, hoje não existe estabilidade política. Já no Afeganistão, onde os EUA permaneceram por 20 anos, os mesmos Talebãs retornaram ao poder apenas dez dias depois da partida das tropas americanas.

"Mesmo que, novamente, você derrube o regime, isso não significa que quem vier em substituição ao regime será uma alternativa ainda melhor, e novamente veríamos o país entrando em colapso e caos, que foi o que aconteceu no Iraque", diz Ali.

Além disso, o especialista em inteligência diz que uma tentativa de obter esse tipo de saída é "extremamente impopular domesticamente" nos EUA. "Donald Trump foi eleito precisamente porque prometeu não colocar os americanos em uma nova guerra sem solução no Oriente Médio", diz Ali.

Embora Trump não possa mais concorrer à reeleição, ele terá que enfrentar eleições parlamentares de meio de mandato no ano que vem, quando corre o risco de perder a maioria no Congresso. E poderia gerar danos enormes aos futuros candidatos republicanos se seguisse em frente com a iniciativa bélica. As resistências a saídas intervencionistas têm sido explicadas pelo ideólogo do movimento MAGA, Steve Bannon, e por um de seus principais comunicadores, Tucker Carlson, que repetem a expectativa de que qualquer ação militar americana no Irã tenha se encerrado no sábado. Por isso, Trump pareceu tão exultante em anunciar um cessar-fogo no fim da tarde desta segunda, 23, embora a sustentabilidade do acordo ainda precise ser verificada na prática: "Deus abençoe Israel, Deus abençoe o Irã, Deus abençoe o Oriente Médio, Deus abençoe os EUA, Deus abençoe o Mundo", postou.

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