Mariana Sanches

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Reportagem

Imigrante grávida cogita mudar de estado nos EUA para bebê ter cidadania

Grávida de sete meses, a imigrante guatemalteca Cristina*, 28, ainda não conseguiu comprar quase nada do enxoval do menino que espera dar à luz até o fim de setembro. Faltam a ela não apenas o dinheiro para as roupinhas do bebê, mas a coragem para sair da casa onde vive, na Flórida, e arriscar um encontro com os agentes do ICE.

A agência de alfândega e controle de fronteiras dos Estados Unidos já fez quase 10 mil detenções, só naquele estado, de imigrantes irregulares como Cristina, desde o início do segundo governo Donald Trump.

Há uma semana, a mulher se viu diante da possibilidade de percorrer mais de mil quilômetros e se mudar às pressas da Flórida para a Carolina do Norte.

Uma decisão da Suprema Corte do país abriu caminho para que uma ordem executiva de Trump entre em vigor. O texto acaba com a cidadania americana por nascimento em território americano a bebês filhos de imigrantes indocumentados ou com vistos temporários (como de estudante, turismo ou trabalho).

Se nenhuma nova decisão judicial surgir, a partir do dia 26 de julho a regra deve passar a valer na Flórida e em outros 27 estados governados por Republicanos. Os recém-nascidos não mais receberão documentos como cidadãos dos EUA.

Já nos 22 estados governados por democratas, decisões judiciais que bloquearam a ordem de Trump seguem valendo por enquanto e, por isso, filhos de migrantes seguirão recebendo a cidadania ao nascer.

"Não tenho nenhum parente na Carolina do Norte, nada, mas vi que é o estado mais próximo em que meu filho nasceria cidadão americano. Vou fazer o que for preciso para que ele tenha os papéis", afirma Cristina, que pediu para ter o nome trocado para proteger sua identidade. "Eu não esperava que o Trump fizesse isso, no primeiro mandato ele prometeu e não fez, mas agora está cumprindo", diz.

Metade da comunidade brasileira está protegida. A outra metade, não

Abolir o direito de cidadania por nascimento independentemente da nacionalidade ou status legal dos pais —contrariando a décima quarta emenda da Constituição Americana— era uma das promessas eleitorais de Trump, que fez campanha com base no projeto de endurecer as políticas migratórias.

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Ele assinou a ordem executiva que determinava o fim da cidadania por direito de nascimento no primeiro dia de governo.

O decreto levou a uma série de contestações judiciais que bloquearam a determinação nacionalmente até que a Suprema Corte decida sobre a constitucionalidade da ordem de Trump, o que ainda não foi feito.

Na semana passada, porém, o mais alto tribunal do país determinou que juízes federais de primeira instância não poderiam bloquear ordens presidenciais em todo o país sem justificar detalhadamente a razão. As ordens de bloqueio sobre a nova regra para cidadania valeriam apenas para quem se manifestou contra elas judicialmente. Nenhum aliado republicano de Trump o fez. Todos os governadores democratas, na oposição, o fizeram. É o que explica a diferença da situação entre estados republicanos e democratas agora.

"Essa é a loucura dessa decisão, ninguém consegue entender o que vai valer em cada estado. Os telefones aqui no escritório não pararam de tocar nos últimos dias com pessoas querendo entender se o filho delas vai nascer cidadão ou não", afirma o advogado Antônio Massa, especialista em migração e sócio do escritório Massa Viana Law, em Massachusetts, atualmente com mais de mil casos em aberto.

A nova regra caiu como uma bomba nas comunidades latinas, já bastante fragilizadas pela intensificação das ações de prisão e deportação.

"A decisão da Suprema Corte é horrível em muitos aspectos, mas um dos principais é a diferença de direitos que cria entre pessoas vivendo nas mesmas condições, mas em estados diferentes. Isso fica claro com a própria comunidade brasileira nos EUA. Metade da comunidade fica em Massachusetts, que é democrata, e está protegida. A outra metade, na Flórida, está desprotegida", afirma Renata Bozzetto, vice-diretora da Coalizão de Imigrantes da Flórida.

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Há cerca de dois milhões de brasileiros nos EUA, segundo a estimativa mais recente do Itamaraty, divulgada em 2023.

Vinícius Rosa, que atua como especialista paralegal em migração em estados republicanos como Flórida e Utah, afirma estar recebendo ligações angustiadas de gestantes. "As grávidas estão desesperadas, é um tal de dizer 'meu Deus, mas bem na minha vez não vai mais ter direito'. O nosso entendimento é que, como está, coisas como o turismo de parto, muito popular entre brasileiros na Flórida, acabaram completamente. E pra quem mora aqui, o pessoal está esperando para ver se muda de estado mesmo para fazer o parto", afirma Rosa.

Separação de família

Para Cristina, a nova decisão da Suprema Corte adicionou mais uma camada de dificuldades em sua já precária condição.

Ela nasceu na Guatemala e atravessou a fronteira entre México e Estados Unidos sozinha, antes de completar 18 anos, "fugindo da miséria", como diz. Trabalhadora rural, costumava colher melancias e morangos até parar de trabalhar por causa da segunda gestação. Nunca teve documentação para viver nos EUA e imaginava que o filho teria uma vida mais fácil do que a sua porque já nasceria com direitos que ela jamais experimentou, como o de votar e o de andar na rua sem medo. A filha mais velha de Cristina, de 8 anos, também nascida nos EUA, é cidadã americana.

A renda da casa era garantida pelo marido, Jorge*, também da Guatemala e que tampouco tinha documentos para viver no país. Há três meses, enquanto parava o carro em uma loja de conveniência frequentada por hispânicos perto de casa, em uma manhã, a caminho do trabalho, o marido de Cristina foi apreendido pelo ICE. Segundo ela, Jorge jamais cometeu crimes e não tinha qualquer passagem policial, portanto, acreditavam que não seria alvo preferencial de remoção do país.

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A família gastou US$ 6.000 com advogados, mas sem sucesso. Jorge acabou deportado apenas cinco dias depois da decisão da Suprema Corte, e deixou Cristina sozinha, grávida e com a filha mais velha do casal nos EUA.

"Meu cunhado está pagando meu aluguel e vamos nos virando como dá. Depois que o bebê nascer espero conseguir um trabalho rápido. Mas se Jorge não conseguir voltar para cá, teremos que ir todos para a Guatemala de volta", diz Cristina, que não sabe quando voltará a ver o marido e pai de seus filhos. Uma organização de trabalhadores rurais da Flórida tem garantido uma cesta de alimentos a cada quinzena para ela e a filha e bancado o transporte para as consultas de pré-natal. Com medo de ser presa e ver a filha mais velha ser levada para um abrigo ou para adoção, ela assinou documentos de transferência de guarda para uma amiga em situação regular nos Estados Unidos. A filha não possui cidadania guatemalteca.

"A verdade é que muitos filhos de migrantes acabam tendo apenas a cidadania americana, e sem ela, poderiam ficar em situação de apatridia", afirma Bozzetto. Ele cita, por exemplo, o meio milhão de imigrantes haitianos cujo status legal de permanência no país acaba de ser revogado por Trump. "Diante da falência do Estado haitiano, é improvável que as crianças nascidas aqui de pais haitianos consigam documentação do Haiti. Podem acabar sem documento de lugar nenhum", completa.

Questionada sobre se pretende processar o Estado pelo direito de cidadania do filho, Cristina afirma que não pensou no assunto e que não teria dinheiro para a empreitada. "Tenho tentando ficar calma para não passar esse sofrimento para o bebê. Ele chuta bastante, creio que está bem. A essa altura, tudo o que posso desejar é que ele nasça com saúde", diz.

*Nomes trocados para proteger a identidade dos entrevistados

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Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

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