De novo, AI-5 e o velho discurso do medo
Na política pelo menos, o mundo caótico que só víamos em filmes sobre futuro distópico chegou, graças à tecnologia.
A legislação dificilmente vai conseguir acompanhar a velocidade das mudanças, porque os maiores cérebros - artificiais ou reais - dessa maravilha chamada Internet estão por trás delas.
O público, afogado num mar de informações desconexas e desconfiado de tudo e de todos, perdeu o norte: a imprensa livre é demonizada. Os grupos políticos imploram: "Sigam minhas redes sociais. Não ouçam o inimigo que quer destruir o País".
E está feita a cisão do tecido social.
Chega a ser uma hipocrisia que todos os players locais desse jogo falem em "Brasil", "povo" e "Nação" quando em momento algum reconhecem os erros e mentiras que levaram à existência de mais de um Brasil, dividiram o povo e deram a "Nação" significados diferentes e conflitantes.
2019 inimaginável
E assim chegamos ao final de 2019, que sequer é um ano eleitoral, com um cenário inimaginável para quem viveu num mundo sem Facebook, YouTube, Instagram e Twitter: um ex-presidente, condenado em duas instâncias pelo atual ministro da Justiça (!), em caravana no melhor estilo dos showmícios do passado.
E o ministro de Economia, Paulo Guedes, revelando medo de não conseguir continuar aprovando medidas impopulares com a oposição ativa nas ruas, torna a citar o famigerado AI-5, o ato da ditadura militar que enterrou os últimos vestígios de Democracia no Brasil pós 64, como possível resposta diante de uma eventual "radicalização" das manifestações.
Lula sabe que sua liberdade é volátil e faz oposição com sangue nos olhos.
Dissidências
No poder, Bolsonaro é uma vidraça atônita, começando a perceber que talvez não seja blindada. Nas manifestações pró governo mais recentes a falta de velhos apoiadores cria um vazio nas ruas.
A turma radicalmente anticorrupção não engole a tentativa de encobrimento de possíveis crimes do filho senador do presidente.
Os armamentistas não queriam só posse: queriam porte de armas. E também não andam muito felizes.
O desempregado que tem foto de perfil tirada dentro do carro, vestindo camisa da seleção e de óculos escuros, continua sem emprego dirigindo para a Uber.
Até os viúvos da ditadura, que sonhavam com ordem e disciplina no estilo militar, quebraram a cara: estão vendo os generais do governo burocráticos e discretos (particularmente agradeço), enquanto a ala olavista envergonha o País com sua falta de senso, falta de noção e falta de educação.
O velho medo
Por isso é que a saída dos governistas hoje é falar em AI-5. É um discurso que agrada parte dos que ainda apoiam o presidente - a ala antidemocrática e os olavistas - e que tenta trazer de volta a militância perdida usando uma arma que não tem nada de moderna ou tecnológica: medo.
O medo do outro. Medo do caos social. Medo de Virar Venezuela e medo de virar Chile, o que por si só é um paradoxo absurdo. Já que a Venezuela está bem próxima do que o governo Bolsonaro tinha medo do Brasil se tornar, é fato. Mas o Chile, até outro dia, estava bem próximo do que o governo Bolsonaro gostaria que o Brasil fosse.
Em essência, o medo é o mesmo.
Medo não é privilégio de nenhuma ideologia: é ferramenta de dominação desde que o mundo é mundo.
Medo dos bárbaros, medo dos Romanos. Medo da plebe, medo dos nobres. Medo dos judeus, medo dos nazistas. Medo dos russos, medo dos americanos.
Quem molda o medo é quem controla a narrativa. Só que hoje governo democrático nenhum controla a narrativa.
Divisão calculada
Por isso há tanto apreço a uma divisão ideológica rasa e que já não define mais o mundo. Para Bolsonaro, no Chile o problema é a Esquerda, insuflando o caos. Na Venezuela, é o povo lutando por liberdade. Essa é a voz da Direita.
No discurso do Lula, mudam-se os polos: na Venezuela o caos é provocado por elementos externos pra evitar o sucesso de um governo do povo. No Chile, é o povo explorado se voltando contra os liberais de direita, traidores do trabalhador. Essa é voz da Esquerda.
Mas nos dois casos é só o povo pedindo a mesma coisa. Que aliás é o mínimo: comida, Educação, emprego, moradia e aposentadoria digna.
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