Topo

Mauricio Stycer

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Série revê a história do jogo do bicho e ligações com as milícias no Rio

Em 2010, num momento de guerra entre contraventores, o filho de Rogério Andrade, Diogo, de 17 anos, foi morto em um atentado a granada na zona oeste do Rio - Gabriel de Paiva/ Agência O Globo
Em 2010, num momento de guerra entre contraventores, o filho de Rogério Andrade, Diogo, de 17 anos, foi morto em um atentado a granada na zona oeste do Rio Imagem: Gabriel de Paiva/ Agência O Globo

Colunista do UOL

29/04/2022 07h01

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Tentando atrair mais público ao Jardim Zoológico, de sua propriedade, João Batista Viana Drummond, o barão de Drummond, vinculou um prêmio ao bilhete de entrada, sorteado diariamente. Era a última década do século 19 e nascia o embrião do que ficou conhecido como o jogo do bicho. O sorteio fez tanto sucesso que em pouco tempo já era possível comprar o bilhete no centro da cidade, longe do Zoológico, no bairro de Vila Isabel. O importante era disputar o prêmio, não visitar o local.

Esse jogo simples, fácil de apostar e acessível a todos, se tornou extremamente popular e, em pouco tempo, ilegal. Ao virar contravenção, ajudou a alimentar a corrupção policial. Desde sempre, a "caixinha" do bicho melhorou a vida de muita gente, observa o ótimo documentário "Lei da Selva: a história do jogo do bicho", de Pedro Asbeg, que estreia nesta sexta-feira (29) no Canal Brasil e no Globoplay + canais ao vivo.

Com cerca de 40 depoimentos, de historiadores, sociólogos, jornalistas e policiais, entre outros, embalados por uma fartura de imagens históricas, o programa em quatro episódios reconstitui em detalhes diferentes etapas dos 130 anos de história do jogo do bicho no Rio.

jogo do bicho - Reprodução  - Reprodução
Representações de animais em uma das primeiras versões do jogo do bicho
Imagem: Reprodução

Mostra o impacto da associação de Castor de Andrade com um mafioso italiano na década de 1950, as primeiras disputas violentas por territórios, nos anos 1960, a simbiose dos bicheiros com a ditadura militar e o papel de policiais do chamado "esquadrão da morte" na proteção dos líderes da contravenção.

Outro capítulo essencial desta história, com roteiro de Arthur Muhlenberg e Tiago Peregrino, é a percepção de que o investimento dos bicheiros no Carnaval ajuda, e muito, ao que o jornalista Octavio Guedes chama de "lavagem de imagem". Em 1975, a Beija Flor desfila saudando "o grande decênio", falando de PIS-Pasep e Funrural. Os bicheiros se tornam figuras pop, aparecem como personagens de novelas. São patronos de escolas de samba e times de futebol.

Ao criarem a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), em 1985, alcançam o status de figuras respeitáveis. Encontram-se abertamente com políticos, participam de debates na Globo e ganham do então governador Leonel Brizola o Sambódromo. "É como o Maracanã para o futebol", explica Darcy Ribeiro. Os bicheiros "conquistam uma cidadania social", observa o jornalista Leandro Demori.

Castor de Andrade - Itamar Miranda/Estadão Conteúdo - Itamar Miranda/Estadão Conteúdo
Castor de Andrade (centro) dentro da viatura da Polícia Civil, após ser preso em 1994
Imagem: Itamar Miranda/Estadão Conteúdo

É somente a partir da década de 1990 que o vínculo do jogo do bicho com diferentes atividades criminosas começa a ficar mais claro. Uma investigação do Ministério Público do Rio e os atos de uma juíza corajosa, Denise Frossard, levam os banqueiros à prisão pela primeira vez. Uma nova geração, mais violenta, começa a atuar. Máquinas caça-níqueis se mostram mais rentáveis que o próprio jogo do bicho.

Disputas territoriais, guerras internas entre membros de famílias, queimas de arquivo. A partir da década de 1990, são vários os momentos em que o noticiário é ocupado por cenas de violência que expõem, claramente, a falta de limites dos líderes dos negócios. Um dos casos mais célebres ocorreu em 2010, quando uma bomba explodiu sob o assento de um carro onde estavam Rogério Andrade e seu filho, de 17 anos, que morreu.

É neste ponto que a série de Pedro Asbeg dá o seu passo mais ousado, ao associar os bicheiros às milícias que começam a agir na zona oeste da cidade, a partir da área conhecida como Rio das Pedras. Os contraventores querem instalar máquinas por toda parte, inclusive em áreas controladas por milicianos. É aí que fazem um acordo. Como diz a promotora de Justiça Simone Sibilio, "um arrenda a área, o outro paga um percentual; ninguém mexe com ninguém".

As ligações com a milícia se expressam em outras conexões, mostra a série documental. O filho de um bicheiro contrata o ex-policial Adriano da Nóbrega para fazer a sua segurança. Um outro arregimenta o ex-policial Ronnie Lessa para o seu time. Nóbrega, como se sabe, foi homenageado em 2005 por Flavio Bolsonaro a pedido de seu pai, Jair Bolsonaro, que considerava o então policial um herói. Lessa, apontado pela polícia como responsável pela morte da vereadora Marielle Franco, morava no mesmo condomínio do hoje presidente.

"A certa altura, nos anos 2000, ninguém mais sabia onde acaba o jogo e onde começa a milícia", diz o documentário, narrado por Marcelo Adnet. O que era namoro, vira casamento. "Os negócios ocorrem paralelamente e vão se cruzar", afirma o jornalista Bruno Paes Manso.

Asbeg, diretor também de "Democracia em Preto e Branco" e "Larica Total, 10 Anos Depois", entre outros filmes, planejava fazer um documentário sobre o jogo do bicho desde 2015. Seu primeiro projeto era de um longa-metragem sobre lavagem de dinheiro dos bicheiros realizada por meio de negócios com cavalos de raça.

O projeto não andou e Asbeg pensou, então, numa série sobre o bicheiro Castor de Andrade, mas logo descobriu que um projeto semelhante estava sendo desenvolvido no Globoplay. O Canal Brasil o estimulou a desenvolver outro argumento, o que permitiu que ampliasse os seus horizontes, levando então a este "Lei da Selva".

"Ninguém sabe o bicho que vai dar amanhã. O que todo mundo sabe é que só vale o escrito e que o futuro do jogo que o barão inventou vai continuar sendo escrito com sangue", narra Adnet.