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Paulo Sampaio

O governo errou desde o início, diz médica da linha de frente da covid

Na porta do pronto-socorro do Emilio Ribas, no domingo, durante o plantão de 24 horas - Paulo Sampaio/UOL
Na porta do pronto-socorro do Emilio Ribas, no domingo, durante o plantão de 24 horas Imagem: Paulo Sampaio/UOL

Colunista do UOL

12/08/2020 04h00Atualizada em 12/08/2020 12h59

Ninguém precisava saber mandarim, italiano ou alemão para captar a experiência dos primeiros países que enfrentaram a epidemia de covid-19. Palavra da infectologista Marta Ramalho, 55 anos, que trabalha desde o início do surto no pronto-socorro do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, referência em atendimento de pacientes com doenças infecciosas.

"Perdemos muito tempo com a falta de planejamento do governo. Por ausência de comunicação entre as instâncias federal, estadual e municipal, não nos preparamos. No primeiro discurso do (ex-ministro da Saúde Luiz Henrique) Mandetta, ele falou em mitigação, no sentido de contenção emergencial de casos, como se a epidemia no Brasil estivesse fora do controle. Naquele momento, não estava. Eu acho que ele não teve força política para dizer: 'Precisamos testar a população, para promover um controle efetivo', como fez a Coreia do Sul, por exemplo."

Semi-isolamento social

Além de tudo, ela diz, "temos um presidente que se considera médico". "O que se vê é um semi-isolamento, um semiuso de máscara, e um protocolo absolutamente incompleto. Esse comportamento dificulta a construção de uma rede de atendimento eficaz, que condiga com o tamanho da epidemia."

Para ela, entre as 100 mil mortes registradas, dezenas de milhares poderiam ser evitadas. "Se continuarmos nesse passo, vamos chegar a 300 mil em seis meses. Mas sempre há tempo para consertar os erros e salvar vidas. Vai depender da vontade do poder público."

Escangalhou tudo

Em São Paulo, ela cita um descompasso entre o resultado da quarentena no estado e nos municípios do interior. "Quando o [governador João] Doria viu os casos pipocando em São Paulo, determinou a paralisação da atividade comercial e serviços não essenciais no estado. O Covas (prefeito de São Paulo) o seguiu. Com isso, o governo do estado segurou a epidemia no interior, que ainda não tinha números significativos."

Porém, em junho, quando o protocolo de retomada da economia do Plano São Paulo passou da fase laranja para a amarela, que autoriza "maior liberação da atividades", os prefeitos dos municípios do interior, que não haviam passado pelo estouro de casos do início, se sentiram encorajados a flexibilizarem a quarentena também.

"Eles entraram em isolamento mais precocemente, o que promoveu uma falsa sensação de segurança, e relaxaram em um momento impróprio. Agora, sofrem um impacto maior. Escangalhou tudo", acredita a médica, que é terminantemente contra a mínima flexibilização do isolamento social.

Nada mudou

"Nada mudou. As pessoas têm de continuar em casa, saindo o mínimo possível. Não dá para dizer simplesmente: 'Ok, vamos então seguir um protocolo de segurança'. A gente sabe que os protocolos de segurança falham."

Ela se diz indignada quando ouve que o governo pretende abrir as escolas. "Crianças e adolescentes se tocam, se esbarram. Impossível mantê-los em distanciamento. Se a direção da escola restringe a aproximação uns dos outros, eles se trancam no banheiro e se agarram, longe da freira e do inspetor. E aí, como é que você deixa um adolescente desses conviver com o avô idoso em casa?"

Chopp sem máscara

A máscara, segundo ela, passou a servir como uma espécie de "escudo" de correção política, apenas para circular em espaços em que se cobra rigorosamente o uso: "No terceiro chopp, a pessoa tira. Por isso, esse relaxamento da quarentena não tem o menor cabimento. De repente, já tem gente abrindo restaurante no Dia dos Pais!"

Para Marta, o brasileiro sofre de um otimismo incorrigível. "As pessoas estão saturadas do confinamento, e o que se faz é normalizar o anormal. Morrem 1.200 pessoas por dia, mas aí, quando são 1.100, dizemos: 'Ah, hoje foi melhorzinho'. Mas não se iluda, a conta aparece 14 dias depois da flexibilização (tempo da encubação e manifestação dos sintomas do vírus)."

A médica diz que a situação a faz lembrar da leptospirose no tempo das enchentes nas marginais Tietê e Pinheiros. "Quando chovia, a gente (médicos do pronto-socorro) dizia: 'Daqui a dez dias, isso aqui vai estar lotado'. Não dava outra."

Família confinada

Carioca, 55 anos, casada com um pneumologista que também trabalha na linha de frente da covid, Marta é mãe de três meninas, de 17, 14 e 12 anos, e mora em São José dos Campos (80 km da capital). As filhas permanecem em casa desde março, junto com as avós. No dia 19 daquele mês, receosa da vulnerabilidade da mãe e da sogra, de 87 e 85 anos, Marta foi ao Rio de carro para buscá-las.

"Antes disso, já no dia 16, o pronto-socorro estava lotado. Naquela semana, o número de atendimentos foi de 70 pessoas para 115. À medida em que o assunto passou a ser noticiado, o número de desesperados aumentou. Qualquer dor de cabeça era covid", diz Marta, que atende todas as terças-feiras no Emílio Ribas, e faz plantão de 24 horas a cada cinco semanas. No resto do tempo, trabalha em unidades de saúde no interior.

Infectados, na lanchonete

Logo depois de fazer seu primeiro atendimento a pacientes com suspeita de covid-19, em 10 de março, e mandá-los para casa com atestado médico e recomendação expressa de que se mantivessem em isolamento social por 14 dias, Marta soube que "todos seguiram felizes" para a lanchonete que funciona em frente.

"A pediatra do plantão foi comer na Burdog, e encontrou o grupo lá. Fui atrás deles, cheguei na hora em que estavam pagando a conta, na maior alegria. Ali, eu vi que não seria fácil convencer as pessoas da importância de respeitar o isolamento." Os oito atendidos teriam sido infectados por um funcionário da empresa em que trabalhavam. Cinco testaram positivo para covid..

Teve medo?

"Medo de quê?", ela pergunta em um ato-reflexo, reação previsível em alguém acostumado a atender o tempo todo pacientes com doenças infecciosas. "Sou rata de pronto-socorro", diz. "Gosto de ficar na triagem, separar os pacientes de acordo com as doenças. Pode ser que eu tenha internado com condições de se recuperar sozinha. Mas cada vez mais eu conheço a evolução da covid."

Ela reconhece que cerca de 10 dias depois do fatídico atendimento aos oito pacientes da lanchonete "caiu a ficha". "Me dei conta de que eu e meu marido trabalhamos no atendimento de pacientes de uma doença da qual não se sabia nada, e que podíamos morrer e deixar aquelas meninas sem pai nem mãe."

Responsabilidade extra

Na ocasião, chamou a filha mais velha para uma conversa, depois que a menina voltou de uma incursão ao parque da cidade para desenhar. "Eu a abracei e disse: 'Não dá mais para você sair de casa, especialmente sendo filha de pais que trabalham diretamente com pacientes de covid'. Agora, você tem uma responsabilidade maior ainda que a das suas amigas.'"

Marta, ela mesma, chegou a achar que tinha contraído o novo coronavírus, fez duas "miniquarentenas" em um apartamento longe da família, uma de quatro dias, outra de 14, mas testou negativo.

Protocolo operacional

No primeiros tempos, a médica prescrevia hidroxicloroquina. Reconhece que pressupunha a eficácia da droga baseada em estudos não conclusivos ou suspeitos, como o do francês Didier Raoult, muito criticado por receitar a droga sem provas de seu efeito benéfico. Ela justifica: "Não dava para esperar a ciência naquele momento. O protocolo era operacional."

Segundo conta, ela se deixou influenciar pela informação divulgada pelo plano de saúde Prevent Sênior — cuja média de idade dos pacientes é 78 anos —, de que conseguiu desestressar sua rede de atendimento com o uso da cloroquina . "O erro deles, pra mim, foi querer transformar aquilo, sem nenhum cotonete coletado, em ciência."

Cloroquina quase nunca

Um dia, graças a uma amiga que estava com covid e apresentou coagulação em algumas regiões, Marta procurou a infectologista Elnara Negri, da USP, a primeira médica no Brasil a relatar progressos com o uso da heparina (anticoagulante). A experiência de Elnara, que atende no Hospital das Clínicas e no Sirio Libanês, foi publicada pela revista norte-americana "Science", considerada uma das mais respeitadas publicações científicas do mundo.

Assim como outros médicos, cientistas e importantes institutos de pesquisa, Elnara é radicalmente contra o uso da cloroquina em qualquer fase da doença. Marta: "A partir da minha conversa com ela, a cloroquina foi quase nunca."

(Ela não parece inteiramente convencida da ineficácia da cloroquina, tanto que mandou manipular a droga e guarda um frasco para "uma eventual emergência").

Ex-doença de rico

Em relação às estimadas 1.200 mortes diárias por covid no Brasil, Marta afirma que a maior parte das que ocorrem em São Paulo são registradas na zona leste: "Houve reunião lá esta semana (passada), e disseram: 'Esses dados não são para ser divulgados. O (Hospital Municipal) Tide Setúbal com capacidade esgotada.'" A Prefeitura informa, através da assessoria, que a taxa de ocupação dos leitos de UTI no hospital está em 40%, ante 52% em São Paulo.

Bem-humorada, a infectologista diz que no início a covid era "doença de rico, com médico de rico". Depois, virou "doença de pobre, com médico de pobre (categoria na qual ela se inclui)":

"Eu pensei: 'Pela primeira vez, os 'médicos de rico' vão salvar os pobres e os 'médicos de pobres', porque quando a epidemia chegar na gente, nós já vamos saber o que fazer."

Longe do 'efeito rebanho'

Segundo ela, isso se verificou, em termos: "Os médicos da periferia e regiões carentes que conseguiram melhores resultados foram os das comunidades que se organizaram e têm estratégia de saúde de família (atenção comunitária básica). Isso deveria acontecer no Brasil inteiro, mas não ocorre."

Em relação à tão aguardada vacina, ou ao chamado "efeito rebanho", que imunizaria a população" pelo contágio da maioria, Marta diz que será preciso aguardar com paciência e, enquanto isso, se adaptar às exigências impostas pela pandemia. "Na melhor das hipóteses, contando uma subnotificação prevista, teríamos no Brasil 3,8 milhões de pessoas infectadas. Para chegar ao efeito rebanho, precisamos de 60% a 70% da população total. Isso significa cerca de 150 milhões de pessoas. Quanto falta? Só 146 milhões."

Ao fim e ao cabo, Marta tem apenas uma certeza: "Só acaba quando terminar."