Topo

Presença Histórica

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Para mulheres negras, democracia é comida no prato e viver com dignidade

Participante da Marcha das Mulheres Negras se mobiliza no centro de São Paulo na noite desta segunda-feira (25), no dia nacional de Tereza de Benguela e dia internacional da mulher negra latino americana e caribenha. - Isaac Fontana/CJPRess/Folhapress
Participante da Marcha das Mulheres Negras se mobiliza no centro de São Paulo na noite desta segunda-feira (25), no dia nacional de Tereza de Benguela e dia internacional da mulher negra latino americana e caribenha. Imagem: Isaac Fontana/CJPRess/Folhapress

Colunista do UOL

27/07/2022 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Segunda-feira, 25 de julho, em celebração aos 30 anos do Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e ao Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, milhares de mulheres de diversas regiões do país irmanadas em torno da Marcha das Mulheres Negras estiveram nas ruas. O lema "Por nós, por todas nós, pelo bem viver'' expressa um modo de fazer política em que a defesa da vida é inegociável.

Elas são integrantes de coletivos e de movimentos sociais diversos. Há mulheres jovens, adultas, idosas, heterossexuais, lésbicas, cis, transexuais, travestis, bissexuais, das favelas, sem-teto, imigrantes, trabalhadoras domésticas, prostitutas, artistas, empreendedoras, intelectuais, mães, artesãs, quilombolas, catadoras de materiais recicláveis, trabalhadoras da saúde, desempregadas, educadoras, religiosas de matrizes africanas, evangélicas, católicas, mães de crianças e jovens assassinados, estudantes. Trata-se de uma ação coordenada pela AMNB (Articulação de Mulheres Negras Brasileiras), constituída por cerca de 29 entidades com capilaridade por todo país.

Qual é a importância da Marcha das Mulheres para construção de horizontes democráticos? Se não formos vigilantes, a cultura do instantâneo nos consome. Parece que estamos em um tempo em que tudo é produzido para ser consumido e esquecido enquanto durar o story. Ocorre que sem a realização da operação histórica, que consiste na análise das permanências e das descontinuidades, não é possível perceber como determinados episódios tensionam visões de mundo consolidadas, ao mesmo tempo que evocam tradições negras longevas. A esse respeito, a substancialidade da Marcha das Mulheres Negras é exemplar.

Levando em consideração os processos de desqualificação dirigidos às mulheres negras, a marcha é um evento político incontornável para a compreensão do tempo presente e da ampliação de repertório de sujeitos históricos. As mulheres negras, ao mesmo tempo em que rejeitam o modelo de democracia vigente, apresentam propostas alinhadas com a vida e a valorização da dignidade humana.

A primeira Marcha ocorreu em 2015. Naquela ocasião, mais de 50 mil mulheres negras foram até o Congresso Nacional, em Brasília, protestar contra as hierarquias construídas pelo racismo e o machismo e perpetradas pela violência e a intolerância religiosa. Elas tomaram as ruas a favor do bem viver. Esse acontecimento reivindica o reconhecimento público de uma tradição feminina negra: a criação de projetos emancipatórios para suas comunidades e para o próprio país.

Mulheres negras e suas organizações democráticas

Durante o período da ditadura militar (1964-1985), houve um recorrente silenciamento da participação de mulheres negras dentro de organizações de esquerda e da luta armada. A esse respeito, a historiadora Tauana Olivia Gomes Silva, percorrendo a trajetória de nove mulheres negras que atuaram dentro desses espaços, afirma suas experiências de lutas foram atravessadas por exílios, filiações e identificações políticas mobilizadas pela resistência política.

Mulheres - Roberto Sungi / Futura Press / Folhapress - Roberto Sungi / Futura Press / Folhapress
Mulheres e coletivos reunidos na Praça da República, região central da cidade de São Paulo (SP), na noite desta segunda-feira (25), para a Marcha da Mulheres Negras e Caribenhas de São Paul
Imagem: Roberto Sungi / Futura Press / Folhapress

São elas: a jornalista Diva Moreira, 76; a médica Maria do Espírito Santo Tavares dos Santos, 74; a escritora, atriz, dramaturga, professora Thereza Santos (1930-2012); a líder estudantil e ex-vice-presidente da UNE Helenira Resende de Souza Nazareth (1944-1972); a lider movimento estudantil Lúcia Maria de Souza (1944-1973); a advogada Dora Lúcia de Lima Bertúlio, 74; a enfermeira Maria Diva de Faria (1931-2018); a educadora Arabela Pereira Madalena, 76; e a psicóloga Edna Maria Santos Roland, 71. Nas análises da historiadora, articulavam conhecimentos teóricos à ação política, usando suas experiências em prol das classes menos favorecidas.

No contexto das décadas de 1970 e 1980, várias mulheres negras contribuíram para a construção do Movimento Negro Unificado (MNU), além de participarem dos processos que culminaram no surgimento das organizações feministas e das Diretas Já.

Destaca-se o 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras, ocorrido de 2 e 4 de dezembro de 1988, em Valença (RJ). Naquele evento, estiveram presentes 450 mulheres negras, de 19 estados. A preparação do encontro foi precedida por debates, seminários estaduais de mobilização e debate político. Trata-se de uma prática que orienta a organização da Marcha das Mulheres, já que ocupar a rua diz respeito a um desdobramento de um trabalho diário das organizações em seus territórios, cujo amplo leque de ações engloba desde acolhimento às mulheres em situação de violência doméstica até assistência jurídica, psicológica médica e religiosa.

Entre as décadas de 1980 e 1990, foram realizados onze Encontros Nacionais Feministas. O que representou um avanço na luta das mulheres negras, já que os grupos organizados por mulheres negras passaram a interferir de forma mais ampla no cenário político nacional, como a Campanha Contra Esterilização em Massa realizada pelo Fórum Itinerante de Mulheres Negras do Rio de Janeiro. Neste contexto, surgiram várias organizações pelo país. Para citar algumas delas:

  • Do Rio, a Nzinga, de 1985, e a Criola, de 1992
  • De São Paulo, o Geledés - Instituto da Mulher Negra, em 1988
  • Do Maranhão, o Centro de Cultura Negra, liderado por Mãe Andreza
  • Da Bahia, o Mulheres Negras do Movimento Negro Unificado

De acordo com a socióloga Núbia Moreira, em 2001, surgiu a Articulação de ONGs de Mulheres Negras Brasileiras a partir de um seminário organizado pelas ONGs Geledés, Criola e Maria Mulher, do Rio Grande do Sul. Essa Articulação produziu uma Declaração de Mulheres Negras Brasileiras, documento sobre as condições de vida e saúde das mulheres negras brasileiras, que ofereceu subsídios para vários encontros regionais, nacionais e latinoamericanos para a 3ª Conferência Mundial contra o Racismo Xenofobia e Intolerâncias, ocorrida em Durban, em 2001.

Esse é o legado associativo que possibilita a existência da Marcha das Mulheres Negras. Em São Paulo, no dia 25/07, o manifesto que foi distribuído durante a Marcha expressa um modo de fazer política cuja valorização e a defesa da vida são inegociáveis. Qual democracia interessa para as mulheres negras? O documento responde:

  • Comida no prato e segurança alimentar;
  • Atendimento à saúde integral em todas as fases das nossas vidas;
  • Emprego com salário justo;
  • Creche e escolas decentes para nossas crianças e jovens;
  • Transporte público barato e de qualidade;
  • Moradia decente e saneamento básico;
  • Segurança pública que nos proteja e não nos mate, nos humilhe, nos maltrate;
  • Atendimento digno para parir e aborto legal para não morrer;
  • Direito a exercer a nossa sexualidade sem culpa e sem preconceitos;
  • Conta de luz mais barata;
  • Comida sem agrotóxicos;
  • Remédios acessíveis;
  • Sistema de justiça competente;
  • Direito à cultura e ao lazer;
  • Direito de ocupar os lugares de decisão e poder;
  • Direito a viver com dignidade e prazer;
  • Garantia de todos os direitos de LGBTQIA+.