Raul Juste Lores

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Opinião

É o empreendedor, estúpido! Nunes e Boulos terão que mudar seu mindset

Será que as cabeças iluminadas de São Paulo já estão chamando os moradores da zona leste de "fascistas"? Ou de "pobres de direita"?

Distritos muito populosos como Itaquera, Vila Matilde, Mooca, Sapopemba, Vila Formosa e Vila Prudente deram a vitória a Pablo Marçal para prefeito. Em vários desses bairros, Lula venceu em 2022 contra Bolsonaro. Por que a classe média emergente se encantou com o discurso focado em empreendedorismo do coach de Alphaville?

80% da população da cidade de São Paulo não tem diploma superior. 25% nem sequer tem o ensino médio completo. Essas pessoas não têm possibilidade de passar em concursos públicos ou de almejar os raros empregos bem pagos no mercado nacional. Ou seja, a ascensão econômica passa por abrir seu próprio negócio.

Tampouco herdaram contatos, indicações, imóveis e nem vão receber uma ajudinha dos pais para o seu primeiro negócio. Nem um colchão de proteção, se falirem. Essas pessoas que ascenderam ralam, de fato. Empreender não deveria ser uma corrida de obstáculos, normalmente, com o governo criando dificuldades.

Há dois tipos de empreendedorismo saudados pela mídia. Quase todo barraco da favela, que vai subindo em andares conforme o dinheiro chega, tem um comércio no térreo. São as únicas fachadas ativas que decolam na cidade. Nesses lugares não há fiscalização para achacar o açougue, o salão de beleza, a quitanda, a creche e o mercadinho da quebrada. E o negócio prospera.

No outro extremo econômico, o empreendedor bem nascido de Pinheiros ou da Vila Buarque tem acesso a crédito, a contatos, a consumidores ricos por perto. Quando for achacado, o pai pode ligar para um advogado ou alguém da prefeitura, e o restaurante sem alvará vai continuar funcionando. Os criadores de futuros unicórnios ou barzinhos badalados não chegam a 1% dos empresários da Pauliceia.

A prefeitura sabota

Mas há uma imensa zona cinzenta do empreendedor-ralador que acha que o governo só serve para atrapalhar e lhe arrancar dinheiro.

Antes de abrir uma academia de ginástica no Jaçanã ou em Ermelino Matarazzo, o candidato a empresário vai ter que gastar uma considerável fortuna com contador, advogado, consultor; terá que gastar com mil plaquinhas diferentes, contra assédio sexual, proibido fumar, livro de reclamações do Procon, e até se o elevador está parado no "mesmo" andar. Elevador e rampa de acessibilidade obrigatórios, o ar condicionado exato, o tamanho da janela, até as normas técnicas dignas de Escandinávia. Com sorte, levará uns cinco anos para ter o alvará dos bombeiros.

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Esses emergentes estão sem a menor paciência com o poder público. Sabem que terão que gastar com segurança 24 horas para que sua escolinha infantil e buffet de festinhas não sejam saqueados à noite. Terão que gastar com plano de saúde privado para não deixar seus funcionários na mão. Até os sindicatos que vivem falando "amo o SUS" exigem cobertura privada de saúde a seus associados.

Se seu negócio funcionar à noite, terá que pagar uma van ou um fretado para seus empregados chegarem com segurança até a estação de metrô mais próxima. Essas pessoas sabem que, além de pagar impostos, terão que bancar tudo por fora, sem confiar nos serviços públicos.

Quando postei no domingo um vídeo a quente em meu canal no YouTube, analisando o resultado do primeiro turno, sublinhei esses órfãos do empreendedorismo que acreditaram em Marçal. Veja aqui!

Não demorou para pipocarem comentários pejorativos feitos pela bolha privilegiada e arrogante. Quem não consegue pagar seu café da manhã sem mesada paterna realmente tem dificuldades para respeitar quem cria seu próprio negócio.

Sem preconceito

Felizmente, porém, as campanhas de Ricardo Nunes e Guilherme Boulos já encamparam em seus discursos acenos para ajudar os empreendedores e estimular o empreendedorismo.

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Não dá para ignorar os 28% de votos válidos que foram para Marçal. Mas precisam combinar com seus militantes. A turma que mais fala de diversidade e contra o preconceito difama quem pensa diferente (ou tem uma vida distante da bolha da Vila Madalena) com a pecha de fascista.

Engraçado ouvir o desprezo nas redes sociais contra a zona leste vindo de gente que vive de sabático em sabático após os 30 anos ou que se diz cineasta aos 40 sem jamais ter feito sequer um curta. Deve haver mais cineastas no papel em São Paulo do que na Los Angeles de Hollywood.

Nunes e Boulos vão precisar mostrar muito serviço para atrair esse eleitorado antissistema e impaciente com a lerdeza da melhoria dos serviços públicos. E da dependência de cartórios, repartições e secretarias onde nada é digital, tudo é presencial, e sempre tem fila. Com horários reduzidos, claro.

Para começar, como reduzir a enorme corrupção entre fiscais da prefeitura? Qualquer pessoa que tenha lidado com subprefeituras e afins conta histórias dignas de máfia. Ou paga propina ou terá problemas eternos (ou ficar com seu estabelecimento fechado, dando prejuízo, por semanas).

Os fiscais honestos não terão nada a temer, se um pente muito fino for adotado. Mas Nunes e Boulos precisam prometer —com detalhe e com ênfase— que vão criar mecanismos e protocolos para descobrir o enriquecimento de funcionários públicos, além de um prazo máximo para a concessão de alvarás e vistorias. E conversar bastante com a Câmara, onde muitas regras e obrigações bem-intencionadas são votadas, sem se medir o impacto em quem tem um pequeno negócio.

A mentalidade (ou "mindset", no idioma marçalês) do poder público vai precisar mudar muito. Se a prefeitura hoje se comporta como um vigia desconfiado e punidor, ela vai ter que aprender a se tornar um "parça" —apoiadora que diga, com sorriso no rosto, "como posso te ajudar?".

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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