Raul Juste Lores

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Opinião

Mídia americana não conhece grotões de Trump; a brasileira, nem a esquina

Imagine William Bonner ao vivo, direto do Pico do Jaraguá, às vésperas da eleição para prefeito. Sobrevoando os loteamentos clandestinos que devastam a Serra da Cantareira. Em vez da Casa Branca, teria São Paulo inteira ao fundo. Na sequência, Renata Lo Prete destrincha em seu telão 3D a demografia paulistana. Não entre republicanos ou democratas, claro, mas em que distritos de São Paulo a população está envelhecendo mais, em que bairros há mais crianças e onde vivem nossos motoboys.

Como cidadão paulistano, já seria um luxo que a cobertura da eleição paulistana tivesse 10% da atenção e do orçamento que a mídia nacional investiu na corrida americana. Mesmo sem fazer ideia de que Trump venceria.

Até o paulistano bem informado se surpreende quando vê a ousadia do PCC em perpetrar um atentado no aeroporto de Guarulhos. Território da Polícia Federal. Quando fui correspondente na Colômbia, no final dos anos 1990, lembro que os principais jornais e revistas locais tinham vários repórteres que cobriam exclusivamente as Farc e a fragmentação dos cartéis de Cali e Medellín.

Pois a imprensa americana continua chocada por "não conhecer o país" e ter sido surpreendida, de novo, com a lavada de Donald Trump. Acredite: nós, brasileiros, não ignoramos apenas os grotões distantes ou os estados-jecas. Ignoramos a nossa esquina.

San Francisco, Pinheiros

No dia seguinte à eleição americana, o New York Times publicou reportagem sobre a possibilidade dos democratas perderem a prefeitura nova-iorquina, diante de escândalos e impopularidade dos últimos dois prefeitos. Longos debates foram feitos sobre a surpreendente derrota do partido democrata em San Francisco, onde uma prefeita negra perdeu a reeleição para um candidato independente (e famoso herdeiro dos jeans Levi), em meio a uma crise de população de rua numerosa com dependência química. Na cidade mais à esquerda do país.

Em São Paulo, quatro dias depois da reeleição de Ricardo Nunes, já não havia uma única reportagem sobre os bastidores do segundo mandato dele com destaque em qualquer portal de notícias.

O dia a dia das cidades brasileiras é coberto, quando dá, por jornalistas em início de carreira. Normalmente, com os menores salários. Sem as vozes de peso na profissão, fica difícil convencer qualquer editor que a cidade seja importante.

Imaginem Andrea Sadi, Pedro Bassan e Sandra Annenberg - meus sonhos nunca são modestos - percorrendo cantos populosos da cidade que mal acompanhamos durante o ano. Pelo menos, por quinze dias antes das eleições a prefeito. Não se gastaria em dólar. Nem precisa de trailer ou motorhome. Saberíamos em que condições de segurança estão os grandes atacadões do Brás; conheceríamos o abandono de prédios realmente centenários da cidade, na Luz ou na Mooca, ou se o Tatuapé está mudando para melhor ou não. Além de JN, teríamos Globo Repórter e Estudio I nessa cobertura inédita. Uma trilha sonora poderosa poderia convencer o telespectador que eleição paulistana é algo importante.

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O Roda Viva, único programa ainda relevante da TV Cultura, não entrevistaria nem Antonio Fagundes, nem Edouard Louis às vésperas da escolha de prefeito. Ambas entrevistas poderiam ser veiculadas em novembro ou dezembro, sem prejuízo do conteúdo. Mas entrevistaria Washington Fajardo, Murilo Cavalcanti, Bete França, Ilan Cuperstein, Claudio Marinho, Ali Estefam ou Camila Obniski. E a descafeinada entrevista com João Campos não ignoraria as abundantes mazelas da cidade do Recife (onde 24% da população mora em favelas, e avenidas são asfaltadas na véspera da eleição e as faixas de pedestres não são repintadas, como em qualquer gestão malufista). Bastaria ver como a mídia local o idolatra para ver que não seria uma boa ideia fazer uma enésima sabatina sem dentes.

(Mesmo neste UOL, colunistas-progressistas do eixo Vila Madalena-Manhattan só parecem incomodados com as agruras de Pinheiros e Santa Cecília. Já o Tremembé ou Cambuci parecem tão distantes quanto a Dakota do Norte ou o Arizona).

Jornalistas que juram ser progressistas não fazem ideia como funciona o Minha Casa, Minha Vida, lançado há exatos 16 anos. São apenas progressistas na mesa de bar, de fim de semana. E se surpreendem que boa parte dos recursos públicos do programa sejam destinados a quem tem renda de 8 mil reais por mês. Favorecendo as mesmas incorporadoras de sempre e famílias menos necessitadas. As cidades brasileiras não são injustas por acaso. Ninguém está prestando atenção.

O jornalismo brasileiro, mesmo sofrendo a crise provocada pelo oligopólio Google e Facebook, que sugaram toda a verba publicitária do mundo, ainda tem recursos para cobrir corridas e jogos de futebol no Extremo Oriente ou bater ponto no Festival de Veneza.

Mídia ou empresariado?

Mas se é pra sonhar... Imagina se esses grupos de empresários brasileiros que preferem fazer convescotes em Lisboa, Miami ou Londres, tudo falado em português, sem um network estrangeiro sequer, decidissem trocar de paisagem? Poderiam discutir o futuro da cidade _ que, afinal, reúne o PIB brasleiro _ na antiga Febem do Pacaembu, na Casa das Retortas ou no velho Palacio dos Correios, no Anhangabaú. 90% dos CEOs brasileiros jamais pisaram em ambos ícones paulistanos. 50% deles não sabem que esses patrimônios existem. Tirar os CEOs dos shoppings próximos à Marginal Pinheiros já teria cara de aventura. Ou safari, para muitos.

Para abraçar esse clima de delírio total, os filhos da elite que amam discutir o Brasil com celebridades brasileiras no campus de Stanford ou no de Harvard, seriam revolucionários pra valer e debateriam o país à volta, com gente que não tem como viajar na Executiva para os EUA? Poderiam até dar uma lição a seus pais _ não é o que os jovens herdeiros mais gostam? _ e fazer a reunião em Cidade Tiradentes ou no Cantinho do Céu. Seria uma pós-graduação em realidade brasileira.

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Mas meu sonho se desfaz quando sabemos que as grandes marcas brasileiras, que compram cotas de milhões e milhões de reais para patrocinar o quinquagésimo BBB jamais se empolgariam com essa cobertura. Não haveria dinheiro, nem interesse. Quando Jô Soares morreu, postei em meu Instagram que era a partida de um raro astro da TV brasileiro que vivia no meio da cidade, em um bairro central, e não em um esconderijo isolado. Boa parte do nosso empresariado e da nossa mídia não sabe se misturar.

A vida anti-urbana educou gerações que não se preocupam com as cidades, que dão as costas para elas. É mais fácil se interessar pela Pennsylvania ou pela Carolina do Norte, ainda que pouco afetem a nossa vida.

Não, não estou menosprezando a importância planetária da eleição americana. Fui correspondente em Nova York e Washington, entrevistei Joe Biden e participei de coletivas com Obama. Como também morei em Pequim, conheço os impérios atuais de perto. Mas também deveríamos nos preocupar, com mais frequência que de quatro em quatro anos, que o Rio seja parcialmente administrado por um Estado paralelo e que São Paulo esteja apodrecendo pelas bordas. Além de lerem o "Como as democracias morrem", os leitores mais informados deveriam se perguntar como as cidades também morrem.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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