Prefeito marca raro gol ao nomear arquiteta que entende de urbanismo
Ricardo Nunes fez um raro golaço, mas você ouviu pouca comemoração. Se der poder de fato para a nova secretária de Urbanismo, a prefeitura pode surpreender.
Nos últimos 15 anos, a arquiteta e urbanista Bete França, funcionária de carreira, coordenou algumas das melhores iniciativas da Prefeitura. O programa Mananciais, que urbaniza favelas em ocupações ao redor das represas da Guarapiranga e Billings. A criação de parques lineares, como o Cantinho do Céu, que além de oferecer lazer a comunidades carentes, cria um cinturão ecológico para blindar o frágil ecossistema da Billings. Bons prédios populares no lugar de barracos.
Alternando temporadas nas secretarias de Habitação e Urbanismo, Bete tirou do papel projetos que se arrastavam havia décadas, como o retrofit da Ocupação Prestes Maia. Convocou um inédito concurso de arquitetura para fazer conjuntos habitacionais de qualidade por bons arquitetos. O programa Renova SP criou moradia social em áreas de favelas, pensando na ventilação, insolação, circulação, plantas e áreas de uso comum nos conjuntos habitacionais.
Tudo o que o Minha Casa Minha Vida poderia ter entregue alguma vez se o alto escalão do PT tivesse mais apreço pela população carente do que pelas empreiteiras que enriquecem com esse negócio. De 2009 pra cá, sabemos quem mais se beneficiou com a versão petista do antigo BNH. Nossos progressistas-só-no-discurso preferem quantidade à qualidade.
Ter uma arquiteta e urbanista com larga folha de realizações é raridade em governos à direita ou à esquerda. Os arquitetos e urbanistas andam ausentes dos espaços de decisão no Brasil. E mesmo os urbanistas-políticos, que gravam vídeos caricatos, sempre aos gritinhos para parecerem combativos, emudecem quando são rifados. Quem é sempre capacho de partido, é escanteado na primeira necessidade do Centrão.
Em 17 anos de existência, o Ministério das Cidades jamais foi ocupado por alguém que tenha estudado Urbanismo. O atual ministro, João Barbalho, é da dinastia que dirige o Pará há décadas (vale checar o que é o urbanismo de Belém). No Governo da Bahia, há quase vinte anos nas mãos do PT, a secretária responsável por desenvolvimento urbano e habitação é formada em Letras. A militância é tão domesticada, daquela que senta e se cala quando recebe ordens, que jamais vai se ler uma crítica arquitetônica aos pavorosos conjuntos habitacionais feitos pelo Minha Casa, Minha Vida (MCMV).
À direita, é a mesma coisa. Bolsonaro poderia ter feito algo melhor que o MCMV, mas seu Casa Verde Amarela foi apenas "uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada". Ninguém vai ouvir sobre algum projeto de habitação de qualidade iniciado por Zema ou Caiado, porque não existem.
Se você nunca se deu conta sobre a importância da realização de concursos para a escolha dos melhores projetos de arquitetura, veja este vídeo aqui.
Estive recentemente no Recife do prefeito João Campos (PSB), esperança da centro-esquerda tiktoker. Olha só o conjunto habitacional que ele inaugurou, com a presença de ministros do governo federal. O consórcio PSB-PT tem orgulho disto:
Seguindo Jaime Lerner
Paranaense de nascimento, Bete é urbanista da estirpe de seu conterrâneo Jaime Lerner ou dos cariocas Sergio Magalhães e Washington Fajardo: quando têm a oportunidade e a caneta, tiram muita coisa do papel. Acreditem: mão na massa é raro. Há vários urbanistas-políticos que gritam diariamente nos telejornais (o cacoete dessa turma é exagerar nos decibéis), mas jamais entregaram uma única praça bem feita nas inúmeras vezes que estiveram no poder. Ótimos de diagnósticos, laboratórios, plenárias, seminários e viagens técnicas pro exterior. Cheios de slogans, gritos contra o neoliberalismo, mas tchutchucas das empreiteiras do Minha Casa, Minha Vida.
Mas como o jornalismo brasileiro entende ainda menos de urbanismo que de economia, basta passar um urbanista-marqueteiro sempre à disposição para dar uma entrevista (tempo livre eles têm), e esses caça-cliques acabam ficando famosos.
Se nunca viu um dos conjuntos habitacionais coordenados por Bete, pode assistir a este outro vídeo que fiz.
(Vale uma reflexão se você ignorava esses feitos. Os círculos cultos e um tanto autorreferentes do Alto de Pinheiros, Jardins e Vila Buarque estão mais preocupados com infidelidade conjugal na classe literária da Vila Madalena ou na agenda dos bloquinhos pré-carnaval do que com qualquer coisa que aconteça a mais um quilômetro do Centro Expandido)

Vida nada fácil
Apesar do vasto currículo, Bete França não terá moleza. Em todas as revisões do Plano Diretor, o mercado imobiliário teve reivindicações atendidas, mas sem sinal de contrapartida. Insaciável por mais metros quadrados de área construída, mas raquítico em inovação ou qualquer preocupação com a paisagem da cidade, não há sinais de qualquer arbitragem sobre abusos ou desleixo.
As fachadas ativas - comércios nos térreos em troca de mais m² - continuam vazias ou sub-utilizadas. E nem sinal da prefeitura cobrar os m² dados de graça a quem mantém fachadas mortas. Ninguém põe ordem no desleixo do mercado imobiliário paulistano, para que não se repitam os desastres do Baixo Augusta, do Jardim das Perdizes ou da avenida Rebouças.
Há vários bairros centrais, cheios de infraestrutura, transporte público e empregos, que são esvaziados ou pouco populosos. Repovoar Água Branca, Brás, Campos Elíseos, Bom Retiro e Pari, entre outros, estaria no cardápio de qualquer secretário de Urbanismo. Bete terá que reformular operações urbanas redigidas pelos urbanistas de sempre, que mal saíram do papel, ou que criaram regiões pouquíssimo mistas, apesar da retórica.
E, principalmente, em sintonia com uma agenda climática, e de uma população que cresce cada vez menos, a secretária precisa priorizar o retrofit. Aquelas reformas e permissões de novos usos a construções ociosas ou vazias. Como diz o urbanista Washington Fajardo, a melhor cidade é aquela que já está construída. Prontinha, com infraestrutura. Bete não poderá contar com o governo federal, que está na contramão do urbanismo sustentável. O PT e a Caixa continuam dando mais dinheiro a conjuntos habitacionais feitos do zero e no meio do nada, das empreiteiras de sempre do MCMV, do que a imóveis usados. Sim, é política oficial, como mostra essa reportagem da Folha de S.Paulo.
(mas você jamais vai ver os urbanistas tiktokers criticarem isso. São cúmplices da especulação imobiliária promovida pelo governo federal).
Além da ignorância e do desinteresse paulistano, Bete precisará mais que um currículo. Vai precisar de paciência e superpoderes.
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