Fernanda Torres poliglota merece Oscar por ensinar Brasil a se promover
Os brasileiros têm tão raras oportunidades de reconhecimento internacional que Fernanda Torres virou um mix de Ayrton Senna, Ronaldo Fenômeno e Gisele. Com mais ginga que os três. E, melhor ainda, no mundo cultural, onde somos ainda menos conhecidos que nos esportes ou nas passarelas. A bossa nova estourou há longínquos sessenta anos. E Oscars não são pra nichos elitizados. São pras massas.
Os discursos de agradecimento de Fernanda e suas participações em talk shows na TV americana nos deslumbram. Como ela consegue fazer piadas em outro idioma, com tamanha desenvoltura? Como a própria Fernanda já descreveu recentemente, o Brasil é uma ilha continental e monoglota, distante da maior parte do mundo. Os comentários da torcida nacional nas redes sociais frequentemente babam na artista totalmente cosmopolita. O brasileiro comum adoraria poder falar inglês.
O British Council estima que apenas 1% dos brasileiros sejam fluentes em inglês. Ou seja, nem os 10% mais ricos do país escapam da monoglotice. Os nepobabies de verdade costumam ser preguiçosos.
"Ainda Estou Aqui" já trouxe a importância de revisitar os crimes não julgados da ditadura militar, a luta solitária de Eunice Paiva e a importância do cinema nacional. Acrescento o benchmark poliglota de Fernanda Torres à lista de conquistas do filme. O Brasil precisa se espelhar nela e querer conversar mais com o exterior.
Pra quem tem preguiça de refletir sobre idiomas, aviso: os americanos não precisam aprender uma segunda língua justamente por nascerem no país mais rico do mundo. Fizeram o seu idioma virar língua franca. O Texas sozinho tem um PIB maior que o do Brasil inteiro. Enquanto não alcançarmos esse patamar de riqueza, é bom negócio não ser monoglota. Nos anos em que morei na China, via até as caixas de supermercado estudando inglês. No gigante asiático, mesmo com alfabeto diferente e tudo mais, 5% da população é fluente em inglês (repetindo, no Brasil, só 1%). Mas, na China, mandar estudar não é ofensa.
Fernandona, melhor mãe
Há outro prazer-bônus em ver Fernanda desfilar seu inglês, francês e italiano mundo afora. Testemunhar como Fernanda Montenegro e Fernando Torres educaram bem sua filha. Investiram. Fernanda-filha ralou. Seu inglês soa melhor hoje do quando filmou com Anthony Hopkins em 1991. Estudar idiomas já adulto é hard task.
E não é comum nas elites econômicas, políticas e culturais do país muito estudo árduo. Há vinte anos o Brasil não tem um único presidente fluente em inglês. Temer e Dilma nasceram em famílias abastadas e estudaram em escolas elitizadas (e nada). Lula e Bolsonaro são políticos profissionais, e bem pagos, há mais de 35 anos, mas tampouco tiveram interesse nesse aprimoramento individual.
Mas até pessoas cuja obrigação seria entender o mundo e conversar com estrangeiros o tempo inteiro não fizeram esse esforço. Marcio Pochmann, o economista que quase desmantelou o IPEA, e está fazendo o mesmo no IBGE (com a renúncia de diretores e assessores em cascata) "fala pouco" inglês e "escreve pouco", segundo seu próprio currículo Lattes. Deve estar atualizadíssimo nos papers internacionais que não são traduzidos imediatamente.
Políticos que nasceram em famílias abastadas, de Simone Tebet a Romeu Zema, não falam inglês. Não leem os britânicos Financial Times e The Economist, e não ouvem nenhum podcast americano enquanto treinam pela manhã.
O atual presidente da Agência Brasileira de Promoção das Exportações, Apex, Jorge Viana, não fala inglês. E foi prefeito, governador, senador, deputado... Precisou mudar o estatuto da própria agência que dirige (e que exigia do presidente falar inglês fluente) para continuar no cargo, com salário de 65 mil reais. O homem das exportações, pode?
Isso não causa escândalo porque boa parte do empresariado brasileiro tampouco consegue dar uma entrevista em inglês. Os poucos que vão a Davos ou a convescotes em Miami ou Lisboa não deixam as rodinhas de brasileiros. Como "vendedores" da marca Brasil, são um fracasso.
E nem muitos milionários bolsonaristas, que se dizem patriotas, mas que só se inspiram no pior dos EUA (Trump, Orlando, torres com nome de carro), conseguem se aperfeiçoar no idioma de Lincoln, Martin Luther King e Bill Gates.
Quando tive cargos de editor na Folha de S.Paulo e na Veja São Paulo, cansei de entrevistar candidatos a estágio egressos de escolas caras como o Santa e o Vera. Sempre me respondiam que não conseguiam fazer uma entrevista em inglês. Filhos da elite que adora dizer que "educação é prioridade do Brasil", mas que jamais pegam um livro na frente dos filhos.
Vender cultura
Além do idioma, Fernanda, Waltinho e Selton estão chacoalhando nossas convicções em outro métier. No mundo da cultura é quase obrigatório ser antiamericano. Desprezar Hollywood e avacalhar essas premiações tipo-Oscar. Mas quem já assistiu a alguma premiação do cinema brasileiro sabe que as nossas são ainda mais sofríveis, e nem conseguem começar pontualmente para respeitar qualquer transmissão televisiva. Nossa cultura só tem a enriquecer se for mais aberta, mais internacional.
O trio de "Ainda Estou Aqui" está ralando no melhor estilo operário da indústria americana. Lançamentos simultâneos do filme em Roma, Londres, Toronto, peregrinação em programas matutinos e noturnos da TV americana, corpo a corpo. Trabalho é isso, seja pra um político, para um empresário querendo exportar seus produtos ou arquitetos querendo ganhar contratos. Como Fernanda declarou ao apresentador Jimmy Kimmel, "Vocês, americanos, são muito bons em vender sua cultura". Que nós aprendamos com ela a exportar a nossa.
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O brilho de Fernanda também me traz memórias muito especiais. Era estudante de jornalismo em Santos quando "Terra Estrangeira", dirigido pelo mesmo Walter Salles, estreou na deliciosa sala de cinema do Posto 4. Um antigo posto de salva-vidas transformado em cinema de arte na praia do Gonzaga pela prefeita Telma de Souza (PT). Um cinema pé na areia por assim dizer. E os alunos da faculdade onde eu estudava faziam sua estreia no "Entrevista", jornalzinho que os pais até enquadravam. Não havia WhatAapp ou assessores de imprensa.
Sugeri ao meu editor, o professor Dirceu Fernandes Lopes, que queria entrevistar as atrizes de Terra Estrangeira. Liguei para a Videofilmes e consegui facilmente os contatos de Fernanda Torres e Laura Cardoso. Ambas foram adoráveis com este novato e explicaram vários bastidores do meu filme favorito do Waltinho. Tive certeza que ela já merecia, naquele 1996, virar estrela de Hollywood.
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