Trump é presente melhor que Oscar para 'O Brutalista'

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Trump decretou que os futuros edifícios do governo dos Estados Unidos sejam construídos no estilo "clássico" da arquitetura. O modelo? Grécia e Roma antigas. Ainda que, como incorporador, tenha feito torres pretas com detalhes dourados, que atrairiam a fúria de Zeus, Netuno e todos os deuses. Nada mais distante do século de Péricles que Trump.
Como Trump não é famoso por estudar história, talvez ignore que Adolf Hitler tenha exigido o mesmo de seu arquiteto favorito, Albert Speer. Quando encomendou os prédios da "Grande Germânia", Hitler queria que Berlim inteira virasse uma Acrópole pesadona e invernal, bem longe do Mediterrâneo.
Hitler imaginava que pureza era a Antiguidade. Queria uma raça pura, ironicamente o retorno a um passado zero alemão, mas que impedisse a contaminação da "modernidade" dos judeus e socialistas que dominaram a Escola Bauhaus. Este é um um dos poucos temas em que qualquer analogia com Hitler não é exagero da oposição.
A História é um banquete para quem quer desvendar o presente. John Kennedy assinou um histórico decreto em 1962. Em um texto de uma página, "Princípios para Guiar a Arquitetura Federal", determinava que os prédios federais americanos não deveriam seguir um único estilo. "Mas que representem 'o melhor da arquitetura contemporânea americana', que tragam inovações e tecnologias da nossa época, que representem 'a dignidade, o empreendedorismo e a estabilidade do governo nacional'".
O primeiro prédio a ser projetado seguindo esse decreto, que deveria simbolizar o novo tempo, foi a brutalista sede do recém-criado Ministério da Habitação e Desenvolvimento Urbano, em 1965. Seu autor, selecionado por concurso: o arquiteto judeu húngaro Marcel Breuer, aluno e depois professor da Escola Bauhaus, autor da sede da Unesco em Paris e da icônica poltrona Wassily, em aço tubular e tiras de lona.
Imigração bruta
Com seu decidido salto para o atraso, regredindo o relógio estético dos Estados Unidos, o presidente Donald dá um presente a mais para a estreia do filme mais épico da temporada do Oscar, "O Brutalista".
É a biografia de um personagem imaginário, o arquiteto judeu húngaro, egresso da Bauhaus, Lászlo Tóth. Sobrevivente de um campo de concentração, ele se refugia nos Estados Unidos. Em um longa que trata da experiência imigrante sem romantismo, há impotência sexual, dependência de drogas e problemas mentais variados em alguém sem a menor pressa em virar americano.
Tóth tem a primeira chance de demonstrar a virtude de seus traços na reforma da biblioteca de um ricaço do interior da Pensilvânia. O castelinho de Harrison Van Buren é claustrofóbico, escuro, com tapetes pesados, decoração carregada e aquele desespero por status. Lembra demais diversas caricaturas de château francês do Jardim Europa ou do Jardim América, só que a do filme tem livros e não parece um peru no pires (os Van Buren moram no campo, há terreno em volta).
O empresário americano, porém, odeia a nova biblioteca, que parece saída da prancheta do finlandês Alvar Aalto. Clean, madeira clara, estantes embutíveis e apenas uma chaise no centro. Horrorizado, Van Buren até se nega a pagar o projeto ao arquiteto. Muda radicalmente de ideia quando a biblioteca vai parar na capa da revista Look. Apenas por ansiedade de status.
Sem condições de reconhecer qualquer coisa bela diante de seu nariz, mas querendo parecer sofisticado (São Paulo é cheinha de Van Burens), ele se torna mecenas do arquiteto, e o convida a projetar um centro comunitário multiuso, até com um templo protestante incluído, em nome de sua falecida mãe. E assim começa uma relação agônica entre capital e arte, entre dois homens orgulhosamente difíceis. Ao contrário de muito arquiteto paulistano, PSTU no Instagram, tchutchuca de condomínio fechado nos bastidores, Tóth não tem coluna vertebral para capacho.
Judeu, em uma América ainda muito antissemita, boicotado em seus ideiais, Tóth chora para a mulher: "Eles não nos querem aqui". Os imigrantes e refugiados dos EUA de Trump reconhecerão muitas atualidades do filme que acompanha quase 35 anos da vida do arquiteto, a partir de sua chegada, em 1947.
Não darei mais spoilers (isto é só inicio do longa), porque "O Brutalista" deve ser saboreado em cada surpresa. Se a duração do filme, de três horas e meia (mas com intervalo, para alívio das bexigas), intimidou, talvez não seja um manjar para você. Tem gente que espera em pé seis horas para ver shows de cantores desafinados ou quatro horas em bancos desconfortáveis para ver carros correndo. Ou oito horas no sofá vendo séries previsíveis. Pobre Brutalista. Dói ver surgir uma produção tão rica em camadas e temas, tão bela e ambiciosa, tão segura de si, desvendando a mais complexa das artes, a arquitetura, em tempos de TikTok, e adultos com falta de concentração típica das crianças.
Os bastidores do filme espelham parte da epopeia que aparece na tela. Levou sete anos para ser produzido e foi obrigado a custar um terço do orçamento original. Custou 10 milhões de dólares, menos que o cachê de algum ator canastrão que veste uma capa e uma sunga por cima da calça para virar super-herói. Graças à pandemia, o filme que tinha começado a ser rodado na Polônia foi quase todo transferido para Budapeste (o arquiteto polonês virou húngaro, em um país que hoje elege majoritariamente a xenofobia e o sentimento anti-imigrante). O elenco foi todo mudado. E assim ganhamos a maior interpretação da vida de Adrien Brody.
Mas algumas coisas permaneceram: a decisão de se filmar tudo em sistema VistaVision, de ângulos muito amplos e resolução quase infinita. Hitchcock e John Houston usaram muito VistaVision quando o cinema buscou competir com a TV. Continua mostrando o que não cabe na telinha de TV. Nem no celular.
Brutalistas de SP
Para o espectador paulistano, que foge dos neoclássicos ao redor do Parque do Povo e gargalha com os castelinhos do Morumbi, há um conforto próximo: São Paulo recebeu vários Lazlo Tóth fugidos do Holocausto e da Segunda Guerra. Graças a eles, surgiram alguns dos maiores ícones paulistanos, do edifício Itália ao CBI-Esplanada, do hotel Jaraguá ao Conde Prates, dos melhores residenciais da Paulista aos da avenida Higienópolis. É uma história que conto em meu livro "São Paulo nas Alturas" (2ª edição, Companhia das Letras, 2024), o que me provocou uma emoção ainda mais íntima. Nossos Tóth tiveram sorte. Aqui, algumas historias desses heróis paulistanos:
Para quem não é iniciado no assunto, alerta: não existe "arquiteto brutalista". O brutalismo foi uma das diversas correntes surgidas a partir do Modernismo, após a Primeira Guerra Mundial, que pretendiam simplificar e democratizar a reconstrução da Europa destruída. Além de criar prédios mais sensíveis e higiênicos depois da gripe espanhola. Incluindo processos inspirados pelas linhas de montagem americanas. De Le Corbusier a Bauhaus, do minimalismo de Mies van der Rohe ao orgânico Frank Lloyd Wright, todos foram modernos.
O próprio Le Corbusier adota o béton brut (o concreto aparente), que dá nome ao brutalismo apenas no final dos anos 40. A UnB de Niemeyer é brutalista, mas a capelinha da Pampulha, não. A FAU-USP de Artigas é brutalista, mas não o seu edifício Louveira. O Sesc Pompeia de Lina é brutalista, mas não a sua Casa de Vidro. E todos passam bem.
Paulo Mendes da Rocha, que fez obras-primas brutalistas, posteriormente acabou realizando prédios espelhados, como o pouco inspirado Sesc 24 de Maio (espelhado azul!). Nada a ver com o Ginásio do Paulistano ou seu residencial de luxo Guaimbê, nos Jardins. Cada arquitetura e arquiteto tem altos e baixos. Não existe um só brutalismo.
Acredite: há caixotões brutalistas que seguem o estilo, mas que são arquitetura de fórmula, sem qualidade, sem conforto térmico ou acústico, e é ok criticá-los. Ninguém vai morrer por isso. A Acrópole e o Coliseu foram brilhantes como arquitetura há 2.000 anos, mas as lojas da Havan e o castelo de Gusttavo Lima são cópias baratíssimas. Não há pior homenagem ao que foi inovador na Era Antiga do que ficar repetindo por cérebros atrofiados.
Anticafonas
Para os amantes da arquitetura, um jogo muito divertido é pescar as referências e inspirações de Tóth. As colunas-árvores da base do complexo dos Van Buren lembram as da sede da Johnson Wax, em Wisconsin, projetadas por Frank Lloyd Wright. Um tio do diretor, Brady Corbet, foi estagiário de Wright. Mas Corbet já afirmou que é fã mesmo de Louis Kahn, o judeu lituano-americano e cheio de cicatrizes no rosto, que trabalhou quase de graça projetando na Índia e em Bangladesh. Não o conhece? Googla já!
A biblioteca no palacete pode vir das memórias da corroteirista e mulher do diretor, a norueguesa Mona Fastvold, cujo avô foi um arquiteto modernista escandinavo, que trabalhou muito com madeira.
A diretora de arte e responsável pela produção do filme, a inspirada nova-iorquina Judy Becker, diz que bebeu mesmo do gênio de Paul Rudolph, outro brutalista da vida real que espalhou obras dos EUA à Ásia, e que também sofreu horrores da caretice do mundo dos anos 1950 em diante. Gay sem armário, vivendo com o marido sem culpa, deve ter chocado seus clientes mais com sua vida pessoal do que com seus monólitos de concreto. Tomara que o filme resgate Rudolph para um fã-clube maior.
E que no Brasil, o filme desperte curiosidade sobre a obra de Franz Heep, criador do Edifício Itália e da Igreja de São Domingos em Perdizes. Outro sobrevivente do Holocausto, um monge da arquitetura, que foi do Modernismo bauhausiano ao brutalismo, acertando sempre:
Para quem terminar o filme incrédulo ou pessimista, um alento: Trump já tinha decretado em seu primeiro mandato, aquele mesmo em que não conseguiu se reeleger, essa volta da arquitetura passadista e canhestra. Não pegou. A decisão de Barack Obama de fazer concursos e entregar embaixadas americanas excelentes ainda está em execução, de Londres a Beirute, passando por Brasília. Nesse métier, Obama deixou um legado maior que o primeiro Trump.
Que o filme seja um antídoto pro presente. O mundo continua superlotado de Van Burens, com fortunas que nunca se traduzem em qualquer elegância. O ego de gente incapaz de reconhecer o belo, morando e construindo coisas fantasmagóricas. O filme garante que Tóth entrará para história. Os Van Buren viraram pó.
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